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Ma Rainey: A Mãe do Blues, vem aí o Óscar de Chadwick?

É difícil escrever sobre «Ma Rainey: A Mãe do Blues» (2020), a que tive acesso antecipadamente, sem destacar desde logo o recém-falecido Chadwick Boseman. Afinal, é a despedida do ator do cinema, onde tem aquela que é talvez, a melhor interpretação da carreira. O filme estreia amanhã, 18, na Netflix.

Ma Rainey: A Mãe do Blues
Ma Rainey’s Black Bottom (2020): Viola Davis as Ma Rainey. Cr. David Lee / Netflix

A história de Ma Rainey’s Black Bottom marcou muitos percursos escolares, uma vez que era comum estudar a obra de August Wilson, o mesmo autor de Fences, na disciplina de Inglês no secundário. Agora, é a vez de chegar a novos públicos de forma diferente, com uma estreia diretamente no streaming da Netflix e um elenco digno de blockbuster. «Ma Rainey: A Mãe do Blues» (2020) chega amanhã, 18, à Netflix e é protagonizado por Viola Davis e Chadwick Boseman, com um aspeto já frágil, mas uma interpretação ímpar.

É impossível separar a história de Ma Rainey (Viola Davis) da época em que tem lugar: o final dos anos 20 nos Estados Unidos. O autor August Wilson, aliás, é conhecido pelas suas peças simples mais fraturantes, que desenham a experiência da comunidade afro-americana na América do século XX. A audiência observa o racismo através do blues, que alimenta os protagonistas da narrativa e lhes dá voz. Ma Rainey é, assim como foi no passado histórico, a grande figura feminina do blues, mas é reinventada à imagem de uma ficção que tem uma história própria e mais alargada, e que precisa dela para contá-la.

Ma Rainey: A Mãe do Blues
MA RAINEY’S BLACK BOTTOM (2020) Chadwick Boseman as Levee. Cr. David Lee/NETFLIX

No filme, Ma Rainey mostra um lado altivo: uma arrogância que a sociedade não “acata” devido ao seu tom de pele — por não ser para mulheres… e muito menos como ela. Tudo é visto com desconfiança: o carro bom, o tom de desafio com que se expressa. Habituada a isso, e ao contrário das personagens que a rodeiam, Ma Rainey reclama o lugar que acredita merecer. E a narrativa ganha uma personagem principal que ousa viver uma vida que não lhe está destinada, ainda que não passe de uma utopia. Percebemos isso frequentemente, por exemplo quando Ma Rainey conta que o seu agente de vários anos (Jeremy Shamos) apenas a convidou para ir à casa dele uma vez, e com o objetivo de Ma atuar para os seus amigos brancos.

No entanto, a voz de que falámos acima é abafada assim que os afro-americanos saem do conforto da performance e apenas lhes é concedida quando, de alguma forma, têm poder de decisão. Se nunca tiveram esse poder em primeiro lugar, vivem sempre rebaixados; se o tiveram (ou acharam isso), mal ficam sem esse poder o ciclo de segregação racial e preconceito arranca de novo. E não parece ter fim: é um loop que se recria dia após dia e do qual nem sempre se choram as vítimas. A tranquilidade aparente desta camada da sociedade condenada a um papel secundário é, portanto, uma bomba-relógio à espera de revolucionar a ação.

Ma Rainey: A Mãe do Blues
Ma Rainey’s Black Bottom (2020): Viola Davis as Ma Rainey. Cr. David Lee / Netflix

Assim como a peça que inspira esta história, «Ma Rainey: A Mãe do Blues» (2020) acontece sobretudo num estúdio de gravação, onde a portentosa cantora se prepara para gravar mais um disco. Já o seu quarteto de músicos conta com Levee (Chadwick Boseman), Cutler (Colman Domingo), Toledo (Glynn Turman) e Slow Drag (Michael Potts). O primeiro tem ilusões de super estrela e quer começar a carreira a solo: algo inacessível para um músico negro e que, como facilmente percebemos, implica uma subjugação de Levee na negociação. Concorda, baixa a cabeça e espera que o notem.

Tudo é uma espécie de panela de pressão. Vamos adicionando ingredientes, a temperatura aumenta e, a certa altura, este processo atinge o seu limite. A resignação dá lugar à fragilidade emocional e à revolta, por vezes raiva, e as personagens tornam-se mais complexas entre elas e também para o espectador. Uma história simples, profunda e pouco evidente, que desafia a audiência a olhar para lá daquilo que recebe sem esforço.

Ma Rainey: A Mãe do Blues
Ma Rainey’s Black Bottom (2020): (L to R) Chadwick Boseman (“Levee”), Dusan Brown (“Sylvester”), Colman Domingo (“Cutler”), Michael Potts (“Slow Drag”), Viola Davis (“Ma Rainey”), Glynn Turman (“Toldeo”)
Cr. David Lee / Netflix

Este é o filme de despedida para Chadwick Boseman, que faleceu recentemente, aos 43 anos, na sequência de uma doença prolongada que, ainda assim, nunca travou a sua vontade de representar. A sua criação de Levee é bem conseguida, emocionante e, em certos momentos, o discurso chega a ser avassalador. Não será de estranhar quando encontrarmos o seu nome, em breve, na corrida a uma estatueta dourada post-mortem. Também Viola Davis deverá volta a estar na corrida ao Óscar, até porque o Covid-19 acabou por atrasar diversos lançamentos no grande ecrã.

A atriz, assim como em «Vedações» (2016), mostra a capacidade de trazer o melhor do teatro para o cinema. O detalhe do movimento, do discurso e da emoção que passa ao espectador recorda-nos porque é uma das melhores intérpretes da sua geração.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

 

 

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