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Kevin Can F–k Himself: vamos falar do estereótipo

A atravessar a melhor fase da sua carreira, depois do Emmy por «Schitt’s Creek», Annie Murphy é a cabeça de cartaz numa série que desmistifica o papel da dona de casa de sitcom. «Kevin Can F–k Himself» estreia hoje, às 22h50, no AMC Portugal.

O tema é cabeludo. A comédia fácil das sitcoms consiste, mais vezes do que queremos admitir, no tipo cool que é casado com uma mulher particularmente bonita, mas que, por um motivo ou outro, é motivo de piada. Uma opção televisiva consciente que começa logo no casting, pelo que é também frequente ter atrizes bem mais novas e atraentes do que o protagonista, o que poderá alargar a conversação ao facto de as atrizes serem muito mais “datadas” do que os atores. A verdade é que não é preciso procurar muito até nos depararmos com um artigo ou entrevista sobre o assunto – a dificuldade de ser atriz a partir dos 30 anos, ou como tantas vezes são escolhidas atrizes mais jovens para desempenhar os papéis dessa faixa etária e seguintes. E não falamos apenas de sitcoms.

Ainda que não aconteça em todas as sitcoms, trata-se de um tópico antigo, mas que se mantém incrivelmente atual. Atrizes de comédia “encalhadas” em sitcoms como adereço de um protagonista masculino, que muitas vezes se veste e comporta como uma personagem bem mais infantil. Uma das séries que vem logo à memória é a primeira temporada de «Kevin Can Wait» e, após pesquisa, é fácil perceber que não se tratou de uma simples coincidência. A criadora Valerie Armstrong não esconde ao que vem: «Kevin Can F–k Himself» aponta vários problemas comuns no universo da comédia em TV, nomeadamente à custa da figura feminina, tantas vezes plana e meramente funcional para que o tal “tipo fixe” possa brilhar. Mas o que acontece quando a mulher sai de cena e a atenção deixa de estar sobre ela?

Longe da faceta bem-disposta e de comédia pronta a que nos habituou em «Schitt’s Creek», Annie Murphy tem aqui o desafio exigente de, simultaneamente, ser convincente em comédia e drama.

Depois de servir de elemento cómico à infantilidade de Kevin (Eric Petersen), Neil (Alex Bonifer) e Pete (Brian Howe), o tom muda, o formato multi-câmera vira formato câmera única, a fotografia escurece e Allison McRoberts (Annie Murphy) pode expressar o quão está cansada do seu marido. No fundo, «Kevin Can F–k Himself» ilustra o que acontece a uma típica dona de casa das sitcoms quando as câmeras não a observam. E o resultado é inesperado: Allison deixa de servir de propósito à comédia fácil e, ao estilo de uma comédia negra, tenta reclamar para si o comando da sua própria vida. De uma maneira extremamente sombria!

Embora o lado de sitcom seja levado a sério, e a história tenha sentido por si própria, há um segundo lado bem dark e que acaba num plano obscuro que motiva a ação da primeira temporada: Allison quer pôr fim ao ciclo… de vez. A personagem de Murphy revolta-se com a sua rotina e começa a planear um caminho para ser feliz – sem Kevin. Forma, neste segundo plano, uma amizade inesperada com a vizinha Patty (Mary Hollis Inboden) que também prova ser mais do que uma personagem unidimensional usada para reforçar o comportamento adolescente do grupo de homens adultos.

Quando Kevin sai de cena, a série perde a cor e até a banda sonora se torna mais sinistra, mas é também nessa altura que «Kevin Can F–k Himself» se torna interessante. Fora de compartimentos, de piadas simples e automatizadas, de personagens sem profundidade utilizadas como instrumentos de comédia. É nesses momentos que tem início o lado dark da nova série do AMC Portugal, bem como a crítica social que inspirou Valerie Armstrong a escrever esta história. O objetivo é simples: tirar o espectador da zona de conforto, que tão bem conhece, e desafiá-lo a perceber o que se passa de errado quando o formato multi-câmera está on. Resta saber se vai ser bem-sucedida ou se, assim que perceberem ao que vem «Kevin Can F–k Himself», não mudam num zapping rápido para uma sitcom tradicional…

 

Texto originalmente publicado aqui

 

 

Sara Quelhas

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