Catch-22: a triste comédia do combate à burocracia

A história de «Catch-22», a minissérie da Hulu que estreou recentemente na HBO Portugal, começa a escrever-se em 1953, oito anos depois do final da Segunda Guerra Mundial. Inspirado pelos ‘cacos’ deixados pela guerra, que tantas marcas deixaram na sociedade norte-americana, o autor Joseph Heller idealizou a trama satírica protagonizada pelo capitão Yossarian. O livro só viria a ser publicado em 1961, em plena Guerra do Vietname, traduzindo aquele que era o espírito dos jovens em relação ao conflito. Nove anos depois, com a guerra ainda a decorrer, Mike Nichols realizou um filme com base nessa mesma narrativa. No elenco, contavam-se atores épicos como Alan Arkin, Orson Welles ou Martin Balsam.

Como tal, escrever sobre a série de 2019, que conta com George Clooney como tripla-ameaça – ator, produtor e realizador – não acarreta a mesma responsabilidade das obras que lhe deram origem. Os contextos são diferentes, bem como a forma como a informação flui mais facilmente e com alcance global, e há uma distância temporal e de análise em relação aos acontecimentos, ficcionais mais situados entre 1942 e 1944, que «Catch-22» retrata. Ao mesmo tempo memória, chamada de atenção e aviso, a série é uma comédia negra que resulta numa verdadeira lição histórica, humana e, sem papas na língua, critica o ambiente de guerra. E muitas ainda decorrem nos nossos dias, com maior ou menor visibilidade.

Para melhor entender a trama, devemos começar pelo nome. “Catch-22” é uma composição burocrática que resulta num entrave (aparentemente) imbatível por quem está na guerra, e que tem por inspiração as falhas no sistema que prejudicam quem está em posições mais baixas da hierarquia. Como nos é explicado no piloto, o médico só pode dar baixa a um militar ‘louco’ se este lhe pedir. No entanto, o ato de uma pessoa pedir para escapar a uma guerra, tendo por base o seu bem-estar próprio e a brutalidade da sua função, é, em si mesmo, uma atitude racional. Quem pedir a dispensa do combate por estes motivos, apelando à sua loucura, é uma pessoa lúcida e, consequentemente, não pode ser afastada por insanidade. É caso para dizer que o principal inimigo não se esconde nas trincheiras, mas sim no papel.

O protagonista é Christopher Abbott, que brilhou há dois anos na primeira temporada de «A Pecadora», na pele do bombista aéreo Yossarian. A personagem optou por aquela função por acreditar que a guerra estava perto do fim e, como tal, o conflito terminaria antes de ele acabar o seu treino. Mas isso não sucedeu e o militar ficou a 25 missões de distância da liberdade. Yossarian verbaliza frequentemente a sua posição perante a Segunda Guerra, e os conflitos em geral, funcionando como uma espécie de comentador intra-narrativo (verbal ou expressivo), que vai dizendo de sua justiça o que pensa do que falam as outras personagens, nomeadamente Scheisskopf (George Clooney). Há reflexões sobre o comando, a religião e até o dever à Pátria, no tom de humor negro que carateriza «Catch-22».

Yossarian vai acumulando insatisfações, seja pelo ridículo das ‘paradas’ e exibições públicas, seja pela fragilidade da vida de quem assume uma guerra que não é a sua. Logo no piloto este sentimento sobe de tom, primeiro com a morte de um recém-chegado e depois com a explosão de um companheiro, ambas com alguma influência sua, de certa forma. Vai tentando apontar queixas que o considerem incapaz de servir, mas nunca acerta na jogada. A extensão das missões para 30 e a explicação da “Catch-22” são apenas mais dois golpes, bem duros, que demonstram onde está o poder. E, na reação, percebemos que o militar americano não olhará a meios para garantir o regresso a casa.

Kevin J. O’Connor

Embora nos chegue num contexto político e social diferente de 1953, 1961 ou 1970, e não tenha certamente o mesmo impacto em norte-americanos e portugueses, a mensagem é transversal e global. Apesar do humor negro e do argumento ficcional, há uma realidade nua e crua à frente de quem assiste a esta irresistível minissérie. Numa altura em que muito se fala de «Chernobyl», e justamente, é também importante não esquecer ou deixar passar despercebida «Catch-22». Caso precisem de mais algum motivo, destaque para a presença do eterno “Dr. House” Hugh Laurie, que interpreta um líder caricatural e uma das personagens mais cómicas, e para Kyle Chandler, um ator tantas vezes subvalorizado e cujo nome na narrativa é irónico e expressa o seu papel de ‘armadilha’: Catchcart – separado resulta em algo como ‘dar carrinho’ ou ‘rasteira’.

Review publicada originalmente na Metropolis.

Sara Quelhas

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