REVIEWS

Chernobyl: os fantasmas do passado ainda têm força

Com um sucesso estrondoso, «Chernobyl» subiu ao primeiro lugar do IMDb ao fim de apenas três episódios. É certo que todas as pontuações subjetivas têm uma importância relativa, mas a subida inesperada da minissérie ao topo das melhores séries de TV de sempre colocou-a no centro das atenções. Depois do final de «A Guerra dos Tronos», a HBO encontrou, ainda que temporariamente devido à sua curta duração, um novo êxito que tem conquistado a audiência, a crítica e a atenção dos media. A trama tem um total de cinco episódios, com o quarto a ficar disponível esta terça-feira.

O que têm «Scary Movie 3 – Outro Susto de Filme» (2003), «A Ressaca – Parte II» (2011) e «Vigarista à Vista» (2013), três comédias de sucesso de Hollywood, em comum com «Chernobyl»? Acredite ou não, o argumentista do trio de filmes, Craig Mazin, é o criador responsável pela minissérie da HBO. Já o realizador Johan Renck é um nome mais associado a telediscos, mas tem estado envolvido em anos mais recentes na direção de séries como «Breaking Bad», «Vikings» ou «Bloodline». Currículos e origens à parte, a dupla combina de forma perfeita para criar a monstruosidade que é o drama histórico «Chernobyl».

O desastre nuclear de Chernobyl, em 1986, é um tema recorrente nas salas de aula, nos canais de documentários e até em conversas circunstanciais. A explosão que destruiu a Central Nuclear, devido a um teste que correu mal e que teve erro humano, é também escrita de pessoas que morreram na noite da tragédia, ou como ‘danos colaterais’ nos dias e nos anos seguintes, sendo imensurável o impacto que a toxicidade teve na região. A narrativa coloca no epicentro da discussão o real – ainda que ficcionado – Valery Legasov (Jared Harris), um químico proeminente na sua época, que foi chamado a analisar a catástrofe e viveu depois atormentado com o que viu e descobriu.

Legasov terá gravado uma cassete antes da sua morte, onde abordava a conspiração por detrás de Chernobyl e a tentativa que houve de abafar a tragédia. É este o ponto de partida da minissérie, o áudio, seguindo-se uma viagem ao passado até ao momento imediatamente após a explosão, em abril de 86. Tendo na nossa posse, olhando do futuro, o conhecimento das consequências, torna-se doloroso assistir à desdramatização do desastre. Nikolai Fomin (Adrian Rawlins), o engenheiro-chefe da Central e apontado com um dos principais culpados, é um dos que se apresenta mais relaxados e em constante negação, desvalorizando as preocupações.

Esta ingenuidade estende-se a hierarquias superiores, no início, bem como à população que se aproxima da colina para poder observar o incêndio em toda a sua grandiosidade. Sabemos o que vai acontecer, a radioatividade e a sua força, o erro que é tamanha exposição aos químicos e a recusa de extrair toda a gente da cidade, mas a série retrata isso de forma sublime. Até no simbolismo. A fazer lembrar uma chuva de cinzas, os resíduos de Chernobyl vão-se alastrando pelas redondezas e caindo sobre os bombeiros e as pessoas que, à distância, apenas admiram o ‘espetáculo’ de luzes.

O facto de sabermos o que se segue é um peso duro de levar às costas. De pouco importa se aquelas personagens não existiram, ou se as reais em que se inspiram não agiram exatamente assim: elas existem para servir a história, bem maior do que qualquer individualidade mas que, ainda assim, não quer descurar cada uma delas. Desenvolve-as, dá-lhes personalidade e complexidade, também para estabelecer uma maior empatia com a audiência. Não faltam elogios para «Chernobyl»; ser a melhor série de sempre ou não é discutível, mas a sua qualidade é algo que fala por si a cada episódio. Para abrilhantar ainda mais «Chernobyl», há um elenco de luxo, onde se destacam, além de Harris, Stellan Skarsgård, Emily Watson ou Donald Sumpter.

É quase impossível encontrar palavras para descrever o assombro que é «Chernobyl». O impacto com que cada queda, cada face vermelha e condenada pela toxicidade, cada descrédito do perigo e cada imponência nos atingem é avassalador. O público acompanha a narrativa consciente de muito do que nos espera, sem poder fazer nada, apenas testemunhando a estupidez (ou inocência) das escolhas e, posteriormente, os jogos políticos para conter o escândalo social e global do desastre de Chernobyl. Trata-se um murro certeiro no estômago, concretizado de modo sublime pela escrita do argumento e pela realização crua e próxima de Renk. Apesar da sua qualidade inegável, talvez fosse difícil ‘aguentar’ mais do que cinco episódios, tal a sua força.

Texto publicado também na Metropolis.

Sara Quelhas

Recent Posts

O Vencedor: a história de um derrotado

As séries eslovacas e checas têm conquistado, aos poucos, o seu espaço no mercado português.…

8 meses ago

One Piece: adaptação reinventa Luffy

A Netflix estreou «One Piece», uma série baseada no sucesso do anime com o mesmo…

8 meses ago

Ahsoka: nova protagonista no universo Star Wars

Depois de uma passagem fugaz por «The Mandalorian» e «The Book of Boba Fett», Ahsoka…

9 meses ago

Only Murders in the Building T3: Streep à ponta de lança

Fica disponível na terça-feira, 8, o primeiro episódio da terceira temporada de «Only Murders in…

9 meses ago

As Flores Perdidas de Alice Hart: o trauma na (nossa) natureza

O Amazon Prime Video lança amanhã, 4 de agosto, a série «As Flores Perdidas de…

10 meses ago

The Full Monty: à deriva, outra vez

O Disney+ estreia esta quarta-feira, 14, a continuação da história trazida ao grande ecrã em…

11 meses ago