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O Alienista: a crónica macabra do preconceito social

Não foi difícil despertar o interesse na série «O Alienista», cujos direitos internacionais foram garantidos pela Netflix ainda antes da estreia, em janeiro deste ano. Além da premissa misteriosa e bem construída, que visa a investigação de um tenebroso assassino em série por parte do “Alienista” Laszlo Kreizler (Daniel Brühl), o elenco é também de luxo; sendo que a ameaça tripla de protagonistas fica composta com Luke Evans e Dakota Fanning, dois atores com créditos mais que firmados em Hollywood. O trio, mais habituado ao grande ecrã, não mostra qualquer dificuldade na transição para a TV e para a relação mais profunda, e prolongada no tempo, com as respetivas personagens.

O Alienista

Nascido em Espanha, Daniel Brühl deu os primeiros passos em produções alemãs e, ao longo dos últimos 15 anos, tem sido capaz de firmar a sua presença como um dos atores europeus mais notáveis e bem-sucedidos. A sua experiência e versatilidade são mais do que evidentes na sua incursão televisiva, revelando-se um elemento-chave para o sucesso de uma história que, essencialmente, assenta no seu Dr. Kreizler, uma figura inusitada numa realidade bem peculiar. Em pleno século XIX, e como é marca da época, a diferença da norma era muitas vezes apontada como loucura e, por inerência, partia-se do pressuposto que era preciso tratamento. Algo com que o psiquiatra, conhecido como o “Alienista”, defende como absurdo: não há possibilidade de curar, apenas de aliviar a dor de quem é colocado à margem da sociedade.

Aquando do homicídio de um rapaz prostituto, que se vestia como o sexo oposto, Kreizler recorre à ajuda de John Moore (Luke Evans), ilustrador do New York Times. Este desloca-se até ao local do crime e desenha a vítima, perante a impossibilidade de Kreizler, olhado de lado pelas autoridades, conseguir a mesma proximidade com o cadáver. A partir desta pequena ajuda parte-se para uma colaboração mais regular, a que se soma Sara Howard (Dakota Fanning), a primeira mulher a conseguir trabalhar na Polícia como secretária. Com ambições claramente mais altas, a personagem intromete-se entre o duo e reclama também para si um papel mais ativo na resolução do caso.

O Alienista

Apresentações feitas, importa perceber melhor o papel do “Alienista” em todo este puzzle. Kreizler estabelece rapidamente ligação a um caso antigo, ocorrido três anos antes, onde um rapaz, que também se identificava como rapariga, foi esquartejado da mesma forma (ao contrário da irmã, que foi assassinada mas cujo corpo não foi desfeito). No entanto, esta lembrança não é inocente, uma vez que Kreizler consultou com a família da vítima e, bem ao seu estilo, tinha convencido os pais de que o rapaz podia ser o que quisesse, pois isso iria fazê-lo mais feliz. Desta feita, e ao contrário da generalidade dos pacientes, os parentes aceitaram a sugestão médica e, como consequência, a mãe das duas crianças culpa o psiquiatra pela morte dos dois filhos.

Não é fácil prever, à partida, até onde Kreizler será capaz de ir para resolver este caso. As motivações, embora não seja claro para todos os intervenientes, são notoriamente pessoais – e a demanda contra a polícia e os poderes instalados na sociedade em que vive acabam por ser uma consequência da vontade de resolver os homicídios. A corrupção é evidente e, ao romper com o sistema estabelecido, o “Alienista” e os colegas são desprezados, maltratados e, até, colocados numa situação permanente de risco. Embora temam sobretudo o bem-estar de Sara, já que ela trabalha na Polícia e é alvo do machismo e violência dos agentes, metidos até ao ‘pescoço’ nos jogos de poder e crime, também Kreizler e John se veem em situações complicadas e de difícil resolução. É ainda cada vez mais claro, com o avançar da ação, que não se pode confiar em toda a gente.

O Alienista

O thriller intenso da TNT, que em Portugal está disponível desde dia 19, não retrata apenas um assassino em série, mas também – e sobretudo – a sociedade a que a narrativa nos remete. Uma visão antiquada – que, ainda assim, para as mentes mais conservadoras não será, infelizmente, assim tão ‘descabida’ – e adaptada ao contexto do século XIX, «O Alienista» é, ao mesmo tempo, uma portentosa crítica social. Os comportamentos humanos, assentes em premissas de corrupção, crime e defesa cega de interesses pessoais, são intemporais e, quando adaptados a uma noção mais contemporânea, também são capazes de retratar a atualidade com frieza. Assim sendo, a sociedade de Kreizler é uma perceção do passado mas, ao mesmo tempo, os seus preconceitos ilustram o contraste entre os avanços tecnológicos e os avanços sociais. Enquanto os primeiros foram claramente ultrapassados, no segundo caso a aceitação da diferença, apesar dos progressos, ainda não está completa.

Juntar Brühl, Evans e Fanning no mesmo elenco, com uma ideia tão complexa e interessante, é mais do que suficiente para nos agarrar ao ecrã. Apesar do ritmo mais lento, a espaços, a sucessiva mudança de intensidade da narrativa é justificada com as suas consequências. Ou seja, o argumento e a interação entre as personagens serve para posicionar o espectador, e informá-lo tanto quanto possível, ao mesmo tempo que as storylines paralelas adensam a realidade em que as personagens vivem e, por conseguinte, que está na origem de tudo o que acontece. Trata-se da primeira série televisiva criada por Cary Joji Fukunaga, que realizou a primeira temporada de «True Detective» e filmes como «Jane Eyre» (2011) e «Beast of no Nation» (2015).

Texto originalmente publicado na Metropolis.

 

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