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Nine Perfect Strangers: a heterogeneidade da dor

Dia 20 tem estreia no Amazon Prime Video, em Portugal, a mais recente aposta da dupla Nicole Kidman e David E. Kelley: «Nine Perfect Strangers». Inspirada por uma obra de Liane Moriarty, tal como «Big Little Lies», a série retrata a experiência de nove pessoas numa health retreat [retiro de saúde].

Nine Perfect Strangers — Episode Two – Episode 102 — Frances (Melissa McCarthy). (Photo by: Vince Valitutti/Hulu)

Depois de assistir aos primeiros seis episódios de «Nine Perfect Strangers», há uma vontade intrínseca de ver mais e saber o que vem a seguir. Num dos momentos de pausa do press day em que a Metropolis participou [e cujas entrevistas serão publicadas na edição de setembro], uma jornalista espanhola dizia: “preciso muito de saber o que vai acontecer a seguir”. Sobretudo porque David E. Kelley e companhia nos deixaram fora da nossa zona de conforto. Apesar de ter lido o livro que inspirou a série, da autoria de Liane Moriarty, não consigo desvendar para onde caminha «Nine Perfect Strangers»: esta tem uma identidade independente e os personagens, tão familiares no papel, ganham novos contornos, novos obstáculos e tornam-se imprevisíveis. Podem ir para qualquer lado e fazer qualquer coisa.

O início da série remete-nos para «Big Little Lies»: a música introdutória, as personagens apresentadas no seu carro. Há uma sensação de que estamos de volta a um sítio que conhecemos bem, mas isso esfuma-se rapidamente pela lente de Jonathan Levine. O realizador aposta numa visão concetual e sensorial, muito focada nos pormenores do comportamento das personagens e nas suas reações, mesmo que silenciosas. O diálogo, ainda que importante, é muitas vezes engolido pela imensidão da Natureza e das distrações que pululam o universo que se apresenta a estas nove pessoas “estranhas”, mas não totalmente.

Nine Perfect Strangers — Episode Four – Episode 104 — Jessica (Samara Weaving) and Ben (Melvin Gregg). (Photo by: Vince Valitutti/Hulu)

Há a família de Napoleon (Michael Shannon), Zoe (Grace Van Patten) e Heather (Asher Keddie), o casal Ben (Melvin Gregg) e Jessica (Samara Weaving); além dos solitários: a escritora fracassada Frances (Melissa McCarthy), Tony (Bobby Cannavale), Lars (Luke Evans) e Carmel (Regina Hall). Lars é a personagem que muda mais drasticamente em relação ao livro, pelo menos inicialmente, assumindo o papel de um jornalista que quer desmascarar a Tranquillum House (no livro é um advogado). Também a backstory de Masha (Nicole Kidman), a misteriosa gerente do espaço, é consideravelmente diferente.

O elenco principal fica completo com Yao (Manny Jacinto) e Delilah (Tiffany Boone), além da participação hilariante do marido de Melissa McCarthy, Ben Falcone.

Uma coisa é certa: o livro tal como estava escrito, sobretudo com o período obrigatório de silêncio dos clientes, não era televisivo o suficiente. Além disso, a complexa viagem espiritual dos nove, ainda que com uma boa dose de intriga e revelações à mistura, não tinha força suficiente para conquistar a audiência seriólica. Logo, por mais que teimosamente se diga que o livro é sempre melhor que a sua adaptação, ou que esta nem sempre lhe faz justiça, a verdade é que «Nine Perfect Strangers» só poderia existir por conta própria. Sem amarras aos pressupostos de Liane Moriarty e sem uma abordagem excessivamente literária da ação: ainda que David E. Kelley possa falhar pelos riscos que correu, ninguém o pode acusar de não ter tentado. Resta saber se o final é competente e o “crime” compensa.

Nine Perfect Strangers — Episode Three – Episode 103 — Yao (Manny Jacinto) and Delilah (Tiffany Boone). (Photo by: Vince Valitutti/Hulu)

«Nine Perfect Strangers» não é apenas mistério corrido e orgânico, é agora um mistério a sério. Há emails anónimos, ameaças contínuas e segredos das personagens que trocam completamente as voltas a quem, como eu, optou por ler o livro. Todas as personagens despertam ideias preconcebidas na audiência, mas a sua ambiguidade permite mudanças inesperadas que alimentam o ritmo narrativo, mantendo o interesse e o mistério durante mais tempo. No fundo, todas as personagens precisam de ajuda e isso justifica porque ali estão, mas, ao mesmo tempo, nenhuma revela totalmente os seus reais objetivos. E, mesmo nos momentos de comédia, o argumento esconde algumas das suas maiores verdades. Mais uma vez, e assim como são desafiadas as personagens, é preciso escapar às distrações da realização.

Naturalmente, não vou desvendar os segredos básicos da Tranquillum House que, não obstante, não são escondidos durante muito tempo. Ainda assim, o principal destaque é Nicole Kidman: a atriz apresenta-se numa figura “estranha” e até quase desconfortável que, apesar da sua aparente calma, solta a espaços uma natureza mais impulsiva e alucinada; que certamente terá implicações no futuro da ação. O seu look está tão diferente do habitual que os próprios colegas apenas a conheceram como “Masha”, na primeira cena de grupo que surge na série, para que as suas reações fossem tão naturais quanto possível.

Nine Perfect Strangers — Episode Two – Episode 102 — Tony (Bobby Cannavale). (Photo by: Vince Valitutti/Hulu)

Já em relação à crítica social presente na série, ela está lá, mas não açambarca a história que quer contar. Até certo ponto, todos os intervenientes são estereótipos de alguém: a influencer que vive das aparências, o novo rico desajeitado, o desportista arrumado e amargo, a escritora que não sabe aceitar as críticas, a família em luto, o amor no meio da confusão. O cliché surge e desconstrói-se – existe, mas há vida para lá dele. Com um argumento competente e um elenco do melhor que se tem visto em televisão nos últimos meses, «Nine Perfect Strangers» embeleza a capa para nos conquistar pelo seu conteúdo. E, num momento como aquele que vivemos há mais de um ano, é importante falar de saúde mental.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

 

Sara Quelhas

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