Espias

Com estreia marcada para hoje, «Espias» ocupa o horário nobre da RTP1. A série transporta o espectador para o Portugal de 1942, entre jogos de sombras, diplomacia e suposta neutralidade.

«Espias» surge como uma continuação natural de «A Espia», série que enriqueceu o caminho para a ficção histórica televisiva em Portugal ao colocar a espionagem e a neutralidade portuguesa da Segunda Guerra Mundial no centro da narrativa. Se na altura acompanhávamos sobretudo a trajetória solitária de Maria João Mascarenhas (Daniela Ruah), agora a RTP expande esse território ficcional com um elenco coral feminino, explorando várias facetas do jogo secreto que marcou Lisboa e o país nos anos 40.

A RTP reforça a sua aposta na ficção histórica com «Espias», uma produção da Ukbar Filmes que alia suspense televisivo e rigor de época. Filmada entre Lisboa, Figueira da Foz e Espanha, a série recria a realidade de Portugal em 1942, um país oficialmente neutro, mas estrategicamente central na Segunda Guerra Mundial. É neste palco de intrigas, negócios de volfrâmio e diplomacia tensa que a narrativa encontra terreno fértil, colocando a espionagem no centro da história e trazendo para o horário nobre um retrato que tem sido progressivamente mais explorado pela memória coletiva.

Espias

«Espias» distingue-se sobretudo pela forma como coloca um grupo de mulheres no coração da narrativa, num género habitualmente dominado por figuras masculinas. Bárbara de Jesus (Madalena Almeida), Rose Lawson (Maria João Bastos), Miss Black (Ana Vilela da Costa), Martha Brenner (Lúcia Moniz), Ema Delmont (Gabriela Barros) e Carol Watson (Kelly Bailey) surgem como operacionais capazes, estrategas e sedutoras, movendo-se entre códigos, manipulações e alianças improváveis. Ao invés de permanecerem na sombra da diplomacia ou do poder militar, assumem aqui o protagonismo da guerra secreta, transformando Lisboa e a Figueira da Foz em palcos onde o risco e a sobrevivência se confundem.

Cada protagonista carrega uma faceta distinta da espionagem. Bárbara, uma jovem falsificadora da Figueira da Foz, é apresentada como pragmática e determinada, mas vive em permanente tensão entre a independência e a sobrevivência. Rose move-se por dinheiro e poder, transformando cada missão num jogo pessoal e tecendo uma teia constante de intrigas. Miss Black, fria e estratégica, encarna a lógica binária da guerra, enquanto Martha Brenner usa a sua timidez aparente como fachada para esconder uma eficácia letal.

Já Ema Delmont, inspirada no célebre agente Garbo, destaca-se pela imaginação e capacidade de improviso; e Carol Watson revela uma dimensão mais emocional, movida pela esperança de reencontrar o marido preso na Resistência. É desta diversidade de perfis que «Espias» retira parte da sua força dramática, criando tensões e alianças inesperadas.

Espias

A dimensão estética de «Espias» funciona como mais uma camada narrativa. Cada personagem é associada a uma paleta cromática própria – Bárbara em tons de azul, Rose em vermelhos, Miss Black em verdes e laranjas e Ema em “xadrezes” monocromáticos – como se se tratasse de um jogo de xadrez em movimento.

Essa opção estilística prolonga-se nos cenários: Lisboa surge filmada nos espaços modernistas do Estado Novo, como a estação fluvial do Terreiro do Paço ou o Parque Eduardo VII, enquanto a Figueira da Foz é retratada como um refúgio luminoso, entre o luxo do Palácio Sotto Mayor e as paisagens das salinas. Este contraste entre ambientes não só sublinha a dualidade da neutralidade portuguesa, como também reforça o tom de thriller histórico que a série procura imprimir.

Embora assente numa narrativa ficcional, «Espias» entrelaça-se com episódios e figuras reais da Segunda Guerra Mundial. A série evoca o papel de Graham Greene, então agente dos serviços secretos britânicos com ligações à Península Ibérica, a engenhosa rede inventada pelo mítico agente Garbo, e até a morte misteriosa do ator Leslie Howard.

O comércio de volfrâmio por Salazar, vendido a ambos os lados do conflito, surge igualmente como elemento de tensão, lembrando como a neutralidade portuguesa foi menos estática do que o discurso oficial quis perpetuar. Ao adaptar e recriar estes momentos, a ficção joga com a História, atribuindo às suas protagonistas o papel de mover as peças de um tabuleiro onde realidade e imaginação se confundem.

Espias

A aposta em séries históricas tornou-se uma marca recente da RTP, visível em títulos como «A Espia» ou «Crónica dos Bons Malandros», e «Espias» vem reforçar essa linha com ambição internacional. Criada por Pandora da Cunha Telles, que assina também o argumento em conjunto com Cláudia Clemente, Mário Cunha e Raquel Palermo, a série alia solidez narrativa a uma realização partilhada entre João Maia e Laura Seixas.

O resultado é uma cadência que alterna a intriga de bastidores com momentos de ação e tensão psicológica. Esse diálogo entre detalhe histórico e suspense televisivo permite que a narrativa avance sem perder densidade, oferecendo ao espectador uma experiência simultaneamente informativa e envolvente.

«Espias» confirma a vitalidade da ficção histórica portuguesa, combinando rigor de reconstituição com um olhar renovado sobre a espionagem. A série tem como pontos fortes a valorização de protagonistas femininas, a consistência estética e a ambição internacional, num produto televisivo que sabe dialogar com o presente ao revisitar a neutralidade portuguesa.

No entanto, o ritmo nem sempre escapa à previsibilidade de certos códigos do género e algumas personagens secundárias acabam por ser menos exploradas do que prometem. Ainda assim, a produção impõe-se como um passo firme da RTP na consolidação de narrativas históricas de largo alcance, oferecendo à audiência uma obra que entretém, informa e instiga reflexão sobre um capítulo decisivo da memória coletiva.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

 

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