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Mr Corman: a crise existencial da normalidade

Vinte anos depois de «3.º Calhau a Contar do Sol», está de regresso ao pequeno ecrã! Joseph Gordon-Levitt é protagonista, criador, realizador e argumentista em «Mr Corman», da Apple TV+.

Quando pergunta aos seus alunos do 5.º ano se se consideram sortudos e apenas um deles levanta a mão, Josh Corman (Joseph Gordon-Levitt) vê-se mergulhado numa profunda crise de identidade. Após ter desistido de uma carreira musical, e um ano depois de Megan (Juno Temple) ter posto fim à sua relação, Josh sente-se invadido por um conjunto de dilemas, dúvidas e mágoas. Completamente à deriva na sua rotina, sem capacidade de fortalecer laços familiares ou ser bem-sucedido nas interações com o sexo oposto, o protagonista acaba sufocado por uma insuportável sensação de vazio, que o leva a reanalisar algumas situações da sua vida e, sobretudo, do seu passado.

Apesar do “mistério” em torno das emoções de Josh, que parece perseguir um vulto pela cidade – e é distraído por essa obsessão –, a verdade é que esta é, no seu âmago, a história do homem comum. De alguém que, depois de desistir do que na sua vida tinha significado, se depara com uma realidade na qual não se sabe mover. E, embora numa primeira camada tal questão pareça superficial, é na construção orgânica da sua narrativa que Joseph Gordon-Levitt tenta ir mais longe. Chamando o espectador para o desconforto sentido por Josh.

Numa espécie de musical “fluído”, onde a música tem vida própria, «Mr Corman» procura estreitar, tanto quanto possível, a relação entre a audiência e a vivência do protagonista. E não só, personagens como Victor (Arturo Castro: Broad City, Room 104, Narcos) têm voz própria, identidade complexa e reclamam para si algum deste protagonismo. A música é, em última análise, um corpo interventivo da ação: define a experiência que Josh tem das suas emoções e, nos seus piores momentos, é de tal forma inquietante que é impossível para o espectador que os seus ataques de pânico e ansiedade passem despercebidos.

Mais do que o “ruído”, é a apatia de Josh que nos responsabiliza, enquanto testemunhas do que acontece, na ação. Ao contrário das personagens, a audiência consegue ter uma consciência (graças às opções musicais) do que Josh sente. Ou seja, por mais banais que possam parecer os problemas da personagem principal, de facto há uma reação orgânica, partilhada com o espectador, que nos mostra (a bom som) que é real. Além disso, Joseph Gordon-Levitt não cria a sensação de ser alguém que não é: não deixa de ser um homem branco e privilegiado, não veste a camisola da luta de classes, não reclama para si os problemas mais complexos da vida adulta. É alguém que, apesar da sua vida de “sorte”, não se sente bem na pele que veste.

No fundo, «Mr Corman» é uma reflexão sobre a vida, não à superfície, mas onde ninguém chega (além de quem a vive). E que, mesmo chegando, não é imediatamente clara e percetível. É sobre o desconforto, a quebra de barreiras, o som que nos perturba a concentração numa altura em que o episódio exigiria a nossa maior atenção. É sobre a existência do argumento além da história que se propõe a contar, escapando às limitações do pequeno ecrã para mexer diretamente com a sua audiência. Resumidamente, é sobre um tipo comum, com problemas comuns, que é forçado a perceber que a sua trajetória não é assim tão especial – mas é única. E também há magia, coreografias, cores e luzes nas coisas mais banais do dia a dia.

Além dos nomes já mencionados, o elenco conta ainda com Debra Winger, Shannon Woodward, Veronica Falcón, Emily Tremaine, Alexander Jo e Noah Segan, entre outros.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

 

Sara Quelhas

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