GLOW: aqui, quem veste as calças são elas

Sem a preocupação, natural, de contextualizar as personagens e a narrativa, «GLOW» pode, por fim, ser aquilo a que se propõe em absoluto: os bastidores de uma série inusitada nos anos 80. A segunda temporada já está disponível na Netflix e é ainda melhor do que a primeira.

Depois de uma primeira temporada de contextualização, o elenco de «GLOW» [“brilho”, na sua tradução literal] está de volta para andar finalmente à ‘porrada’. Com um treino muito intenso, que tentou colocar as atrizes à altura do desafio, Ruth (Alison Brie) e companhia vão ter agora a prova derradeira: será que são mesmo capazes de fazer da série de wrestling um sucesso de audiências? E será que Debbie (Betty Gilpin) vai levar o novo emprego (demasiado) a sério? As perguntas são muitas, e a série da Netflix não tarda a dar-nos respostas.

Por mais incrível que pareça, a série criada por Liz Flahive e Carly Mensch tem mesmo um fundo de verdade. «GLOW: Gorgeous Ladies of Wrestling» tinha tudo para ser um fracasso – mulheres sem particular talento e com um orçamento reduzido a combater na TV? –, mas a verdade é que foi um sucesso e fez furor entre 1986 e 1989, altura em que o canal retirou inexplicavelmente o apoio. Assim como acontece na narrativa, que retrata a sua fonte de inspiração de forma sublime, os confrontos entre lutadoras eram assentes em estereótipos e os conteúdos tinham como imagem de marca o facto de serem politicamente incorrectos. Preconceito para com estrangeiros, figuras nada tradicionais e fora da norma? Com certeza!

Protagonista de «GLOW» e vilã na ‘série de ficção dentro da ficção’, Ruth é o fio condutor de que depende toda a ação. Por um lado, o espectador é tentado a empatizar com a personagem principal, ainda que as suas escolhas sejam frequentemente questionáveis e seja logo apresentada, no piloto, como alguém que teve um caso com o marido da melhor amiga. A verdade é que, apesar dos traços de vilania, Ruth tenta efetivamente mudar e, a certa altura, já não se sabe quem é mais culpada – se ela, se Debbie. Curiosamente, o seu papel de má da fita assume a forma de uma personagem russa, ‘brincando’ com o conflito histórico entre a Rússia/União Soviética e os Estados Unidos, nomeadamente no que diz respeito à Guerra Fria.

A veia feminista da série é evidente e fala por si, sem necessidade de grandes truques estilísticos: ela faz parte da trama com naturalidade. Por um lado, temos a crítica frequente ao entendimento do lugar dependente da mulher, bem como à dificuldade que esta tem em assumir-se em lugares de destaque na vida profissional, como a realização ou a produção. Por outro lado, embora as mulheres estejam em maior número, são constantemente incapazes de superar a voz masculina, que decide, usa e abusa da falta de poder que a sociedade permite à mulher. Há muito humor, sim, mas «GLOW» também sabe falar muito a sério.

A nova temporada arranca cheia de força, indo direta aos assuntos e trabalhando as pontas soltas que foram deixadas em aberto na estreia. Além do mais, e ao contrário do que acontece no ringue, a série da Netflix não distingue com a mesma clareza heróis e vilões, pelo que o/a espectador/a vai ter muitas surpresas, sobretudo se acha que já sabe tudo sobre as personagens. No fundo, «GLOW» separa muito bem a sua realidade da realidade que faz parte da série de wrestling e, por conseguinte, da homenagem à original dos anos 80. Embora as cartas sejam colocadas todas na mesa, há sempre um trunfo pronto a ser lançado e a mudar o rumo do jogo.

Texto completo na edição de julho da Metropolis, que sai em breve.

 

 

Sara Quelhas

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