Em Arkangel, Black Mirror volta às suas raízes, com louvor.
Devemos sempre voltar ao sítio onde fomos felizes, dizem. Ou, no caso de Black Mirror, talvez a expressão certa seja “infelizes”, ou seja, o sítio onde descobrimos o pior do ser humano. Arkangel volta a explorar territórios familiares em Black Mirror, desta feita com a realização de Jodie Foster. E, com isso, torna a colocar-nos a dúvida existencial de sempre: e se fôssemos nós?
(O texto que se segue contém SPOILERS do episódio Arkangel)
A premissa do episódio é simples: depois de um susto (perder a filha de vista durante umas horas), uma mãe (Marie) resolve implementar-lhe um chip de “controlo parental”, aproveitando uma tecnologia experimental em testes. A partir dessa altura, e através de um tablet, a mãe consegue ver tudo o que a pequena Sara vê e receber alertas de perigo, mesmo à distância. Mas não só: existe também a opção de filtrar a realidade, tornando-a “kid friendly”, sem sangue, violência ou sexo. Útil ou assustador? A linha é ténue, como sempre na série de Charlie Brooker.
Em Black Mirror, as narrativas caminham tradicionalmente por um de dois caminhos: um arrojado twist final que permite explicar todo o episódio (como em White Bear, por exemplo) ou um cenário conhecido à partida e que percebemos, desde o início, que vai descambar – embora não saibamos bem a que nível. Arkangel segue, claramente, este último fio narrativo. A partir do momento em que somos apresentados à tecnologia, instintivamente tememos as consequências. Até porque Black Mirror já quebrou qualquer resto de inocência em relação a nós próprios: finais felizes, só em San Junipero.
Portanto, Arkangel acaba por prosseguir num trilho facilmente previsível, entre o controlo obsessivo de uma mãe que, tragicamente, só quer o melhor para a filha, e uma criança-tornada-adolescente que exige a sua necessária liberdade. A previsibilidade não é, no entanto, um ponto negativo, mas sim a base para a desgraça anunciada. E Jodie Foster, ao leme da realização, traz à superfície todas as complicadas nuances e camadas de uma relação familiar, para o bem e para o mal.
Sara cresce e o controlo excessivo começa a fazer os seus danos. Multiplicam-se as dúvidas: onde deverá começar a autonomia e até que nível devemos proteger os mais novos? Em que patamar é que o controlo apenas dá origem a novos perigos, sem a necessária preparação para o mundo real?
Sem possibilidade de retirar o chip (a tecnologia foi descontinuada por razões éticas), cabe a Marie decidir parar de usar o tablet e arrumá-lo num canto esquecido. Contudo, o apelo tecnológico (ou, mais certeiramente, o apelo do controlo) permanece, à espera de um novo susto como justificação moral.
No final, a revolta da filha controlada em segredo tem consequências trágicas. Confrontada com o facto de que Marie voltou a usar o tablet, desta feita às escondidas, para controlar todos os seus passos, Sara reage violentamente e agride a mãe com o tablet “big brother”. O dispositivo tecnológico parte-se e Sara segue viagem para uma vida off-grid.
Arkangel explora, de forma exímia, a necessidade de controlo dos pais, a infantilização cada vez maior das crianças e os dilemas face à sua autonomia. Como pais, é difícil largar as crianças de vista, permitindo-lhes crescer e expor-se ao mundo real. Nada é mais natural do que a proteção aos indefesos e, nesse sentido, um filtro contra a realidade mais violenta parece o sonho (nunca proferido) de qualquer pai. Até que ponto empenharíamos a liberdade dos nossos filhos perante a tecnologia que nos desse o controlo?
O grande trunfo de Black Mirror foi sempre este: uma sucessão de contos urbanos sobre o ser humano e a sociedade mediatizada em que vivemos. A tecnologia é o “artifício”, o mote à ação, mas o âmago sempre foi o que existe em nós. É este o ingrediente que faz de Arkangel um dos melhores episódios que esta season tem para oferecer: o medo de nós próprios — e a dúvida sobre se, com a tecnologia certa, não faríamos exatamente o mesmo. Black Mirror volta a comprovar, sem necessidade sequer de twists ou purpurinas, que é a série que mais releva sobre nós. Infelizmente.