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The Good Doctor: preservar o legado de Dr. House

O drama médico mais promissor dos últimos anos marca o regresso de David Shore, o criador de «Dr. House», ao género que o consagrou. O piloto convence e «The Good Doctor» até já bateu «A Teoria do Big Bang» em termos de audiência, nos Estados Unidos. Estreou dia 25, quarta-feira, no AXN, às 23h10.

Ainda não chegou a Portugal e já faz estragos lá fora. No passado dia 9 de outubro, o terceiro episódio de «The Good Doctor», da ABC, entitulado “Oliver”, surpreendeu tudo e todos ao bater a titularíssima de audiências «A Teoria do Big Bang», da CBS. A história conta-se em poucas palavras: com 18.2 milhões de espectadores contra 17.9, «The Good Doctor» conseguiu, em semanas, aquilo que pouquíssimos conseguiram ao longo dos últimos 10 anos — destronar a popular comédia em confronto direto. A dar os primeiros passos no pequeno ecrã, a série criada por David Shore, o responsável pelo incontornável «Dr. House», encheu o peito e está pronta a enfrentar (e conquistar) até aos seriólicos mais céticos.

Mas desenganem-se, este não é o típico confronto de David contra Golias. A qualidade de «The Good Doctor», inspirada na homónima coreana de 2013, é inegável. Sobretudo se tivermos em conta que os dramas médicos são uma constante a cada nova temporada, mas a quantidade, pelo menos nos últimos anos, não tem encontrado correspondência na qualidade. Embora os bastidores dos hospitais continuem a habitar o horário nobre de muitos canais, apenas «Anatomia de Grey» e a britânica «Doctors» têm, na história recente da televisão, mantido a sua popularidade — «General Hospital» é um fenómeno à parte, já vai em 55 temporadas. No entanto, no rescaldo da saída de Shonda Rhimes da ABC para a Netflix, o destino de «Anatomia de Grey», estreada em 2005, pode assumir contornos trágicos… como acontece à generalidade das suas personagens.

Passemos à premissa — arriscada e promissora — de «The Good Doctor». Se achava que o final de «Bates Motel» ia ditar o afastamento de Freddie Highmore, ou o seu regresso mais assíduo ao grande ecrã, surpresa: o miúdo maravilha que fez da prequela de «Psico» (1960) — «Bates Motel» — um sucesso está de regresso. Freddie interpreta o protagonista Dr. Shaun Murphy que, tal como acontecia com House (Hugh Laurie), promete ser uma verdadeira dor de cabeça para os colegas. Isto porque, apesar da sua reconhecida genealidade, Shaun transporta consigo os fantasmas de um passado traumático, e o risco de afetar irremediavelmente o futuro. Tempos opostos que se atraem como um íman, e que puxam Shaun de forma igualmente poderosa, deixando-o num limbo chamado presente.

E que presente é esse? Shaun é um cirurgião jovem em vias de ser contratado pelo Hospital St. Bonaventure — isto se o Dr. Aaron Glassman (Richard Schiff), o diretor, vencer a batalha hercúlea que tem pela frente: convencer os seus pares. Autista e com savantismo (síndrome do sábio), Shaun tem uma inaptidão crónica para interagir socialmente e, como seria de esperar, para trabalhar da maneira expectável. A lembrar uma utopia onde o Anjo Bom tem de coexistir com o Anjo Mau, Shaun tem de lidar com dificuldades aparentemente banais que, para ele, se vão revelar tão ou mais exigentes que o golpe preciso de um bisturi. No entanto, já vimos pela amostra em «Dr. House», de onde «The Good Doctor» retira muito do seu espírito, que nem sempre a normalidade oferece os melhores resultados.

Em “Burnt Food”, o primeiro episódio da série, o (pontual) realizador Seth Gordon empresta ao drama médico a suavidade que aplicou já em sete episódios de «Os Goldberg» e até em «Baywatch: Marés Vivas» (2017). Focado em cada um dos intervenientes como uma individualidade complexa, Gordon usa a câmara como um mero espectador, invasivo — ainda que colocado num ponto privilegiado, o que intensifica ainda mais a presença das personagens. Esta visão, saudavelmente manipuladora, acaba por beneficiar o argumento, acelerando os processos e a nossa perceção das personagens e do que podemos esperar delas. Por vezes são apenas questões pormenor ,mas, quando recebemos informações novas em catadupa, a determinação de Gordon é uma reconhecida mais-valia para o piloto. Além disso, o facto de se optar pela ilustração gráfica do pensamento de Shaun — tornando-a visível para nós — desmistifica o seu raciocínio e retira a magia da narrativa, pelo que, em contrapartida, a sustenta na lógica. E nós agradecemos.

«The Good Doctor» é uma lufada de ar fresco nas séries de temática médica e, também, numa rentrée televisiva recheada de ideias recicladas e super-heróis. Como extra, a série traz para a linha da frente, entre outros, um trio portentoso: a talentosa Antonia Thomas («Misfits», «Lovesick»), Nicholas Gonzalez («Sleepy Hollow», «Pequenas Mentirosas») e Hill Harper, que conta no currículo com passagens duradouras por séries como «CSI: Nova Iorque» (197 episódios), «Agente Dupla» e «Sem Limites». Sem grandes truques ou alarido, «The Good Doctor» quer reclamar o lugar que antes pertencia a «Dr. House», terminada em 2012, e que séries como «Chicago Med», «Code Black» e «O Turno da Noite» foram incapazes de ocupar.

Texto originalmente publicado na Metropolis

Sara Quelhas

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