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O Assassinato de Gianni Versace: onde é que arranjaste tanto estilo, pá?

O arranque luxuoso de «American Crime Story: O Assassinato de Gianni Versace», com uma sonoridade a fazer lembrar um outro épico bíblico, é, na sua essência, uma experiência quase mística. Ainda assim, e embora funcione como uma boa distração perante a incoerência narrativa, traduz a incursão extravagante de uma história erguida sob uma superfície demasiado frágil.

Há uma cena célebre de um programa qualquer do José Figueiras, perdido algures nos anos 90, na qual um elemento da plateia pergunta ao apresentador onde foi arranjar tanto estilo. A mesma pergunta que ecoa, ainda que de forma menos inocente, quando assistimos ao primeiro episódio da segunda temporada de «American Crime Story», O Assassinato de Gianni Versace. A vida de Versace esbanja glamour, numa caraterização sublime daquela época [como diria uma amiga minha, seria mais difícil se fosse Tom Ford], mas a qualidade está longe de ser a mesma a nível de argumento. A preocupação estética está lá, mas o resto é um conjunto de nadas, ou de muito pouco.

Antes de mais, é preciso esclarecer uma coisa: o protagonista desta história não é Versace, interpretado aqui pelo venezuelano Edgar Ramírez, mas antes o assassino em série Andrew Cunanan (Darren Criss). Os criadores usam e abusam da sua liberdade criativa para construir e dar profundidade àquele que é, muito provavelmente, o papel da vida de Criss, que já tinha colaborado com o produtor executivo Ryan Murphy em «Glee». Menos sorte tem Donatella Versace (Penélope Cruz), que faz jus à sua fama de pessoa complicada.

É difícil ficar indiferente ao homicídio de Versace. Seja pela sua dimensão no mundo da moda, seja pela sua presença social enquanto celebridade – à qual a minha geração escapou –, há um apelo forte à nossa veia voyeurista mal ouvimos o seu nome. Deste modo, há acontecimentos do episódio inicial que nos saciam um pouco a curiosidade, ainda que o namorado de então do estilista, Antonio D’Amico, vivido na série por Ricky Martin, já tenha dito que não terá sido bem assim. Não obstante, o ritmo composto até ao disparo fatal, datado de 15 de julho de 1997, é, na sua base, bem conseguido. O pior é depois.

Além dos constantes avanços e recuos temporais em «O Assassinato de Gianni Versace», que acontecem sobretudo, e numa fase inicial, para relacionar Cunanan e Versace, há também uma certa decadência narrativa que baixa abruptamente a intensidade do arranque. Como se o clímax fosse atingido ao fim dos primeiros cinco minutos e o resto fossem fait divers. É inegável, apesar de tudo, a atenção problematizada à temática da homossexualidade nos anos 90, uma altura bem mais conturbada do que os dias de hoje. Versace, polémico por natureza, assumiu publicamente que era gay e nem sempre é fácil separar o ‘boneco’, criado ao longo dos anos, do problema real e inegável do preconceito. A série tenta fazê-lo.

Após «Feud», protagonizada por Jessica Lange e Susan Sarandon, a única envolvida ainda viva, Olivia de Havilland [atualmente com 101 anos], veio mostrar o seu desagrado com a suposta mentira por detrás da trama ‘factual’. Desta feita, é a família Versace a mostrar-se desagradada com a segunda temporada, sendo que ainda não se sabe até onde Donatella e companhia estarão dispostos a ir. Até ao momento, a polémica apenas ajudou o marketing. E, quando «Feud» se centrar em Carlos e Diana, como vai reagir a Família Real Britânica? E o próprio público?

Por diversas vezes, Ryan Murphy, que está agora a caminho da Netflix na sequência de um negócio estratosférico, defendeu que não está a fazer documentários – está a (re)imaginar acontecimentos factuais. O que, trocado por miúdos, quer basicamente dizer que os nomes reais ajudam o marketing, mas esqueçam o rigor histórico. Confusos? É como as letras pequeninas dos contratos, passíveis de passarem despercebidas e capazes de resultar em chatices valentes. Se ninguém reparar, tanto melhor; é que se esta fosse a história de um qualquer Joaquim e não do Gianni, o hype seria bem diferente, certo?

Inicialmente, a segunda temporada de «American Crime Story» deveria ser sobre o furacão Katrina, mas a agenda ocupada da anunciada protagonista Annette Bening complicou as contas. Como tal, fica a dúvida: terá a história de Versace sido apressada para cumprir os prazos expectáveis pela FX e restantes produtores? É, no mínimo, questionável tratar-se de uma série com uma só base: o livro escrito pela jornalista da Vanity Fair Maureen Orth, Vulgar Flavors, de 1999. Ou seja, algo que foi publicado menos de dois anos depois do crime e que tem quase 20 anos.

Aponta-se o caráter sensacionalista da obra, baseada supostamente em comentários de pessoas que não estiveram diretamente envolvidas no caso, e cuja veracidade é, consequentemente, questionada pela família Versace e não só. Como tal, muitos garantem que as ‘verdades absolutas’ de Orth, como o facto de Versace ter SIDA, não passam de falsos rumores. Não teria sido interessante confrontar aquilo que a autora defende, que mais não fosse para reforçar a tese de «O Assassinato de Versace»? Ao que tudo indica, os criadores da série nem tentaram… “Não é um documentário”. Está bem então.

 

Sara Quelhas

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