Mrs Fletcher: pornografia, nudez e muita irreverência

Caso alguém vá parar por “engano” ao piloto de «Mrs Fletcher», disponível a partir da madrugada de domingo para segunda – e com episódios lançados semanalmente –, a série faz por esclarecer logo ao que vem.

Na primeira cena, Eve Fletcher (Kathryn Hahn) é chamada a intervir no lar onde trabalha, quando um dos idosos vê pornografia num dos computadores instalados na sala de estar. É um facto: a série tem muita pornografia – inclusivamente com alguns momentos explícitos –, sendo um elemento central na evolução de Eve após a saída do filho de casa.

Dois anos depois do final de «The Leftovers», o criador Tom Perrotta regressa para falar novamente sobre a perda, ainda que desta vez recorra a um tema bem mais comum. O “ninho” vazio depois da saída do filho de Eve, Brendan (Jackson White). A mulher, divorciada há 10 anos, está demasiado dependente da rotina do adolescente, que assume uma postura indiferente e sempre ligado ao telemóvel, sem o menor esforço em ter um papel ativo na sua mudança para outra cidade. A dinâmica é incómoda, é certo, estando presente uma forte crítica social, mas não é exatamente essa a história que Perrotta quer contar.

Mãe e filho separam-se pela primeira vez desde o berço. Muitas histórias começam assim, mas poucas ousam ir tão longe como esta. Ambos têm maneiras próprias de lidar com o corte: o comportamento de Brendan, outrora um dos rapazes mais populares do secundário, revela bastante insegurança. Apesar da experiência sexual, é muito imaturo e está perdido em relação aos objetivos que tem para o futuro. Já Eve, que começa presa a uma fase mais amargurada, aproveita a solidão da casa para ver pornografia e explorar, muitas vezes “mimicando”, algumas das cenas.

Muito colada ainda à imagem de melhor amiga das protagonistas, veja-se a série «A Patologista» ou «Como Perder um Homem em 10 Dias» (2003), Kathryn Hahn tem vindo a romper com esse typecast em trabalhos recentes. Embora aqui mantenha a faceta desastrada que já conquistou o público, a verdade é que a sua Eve vem romper com todas as ideias preconcebias em relação à atriz e às mulheres próximas da meia-idade – ou aqui que socialmente é visto como correto. Não há dúvidas que as tramas mais “libertinas” deixaram de ser uma novidade, muito por responsabilidade da ousadia da HBO, mas «Mrs. Fletcher» procura trazer ingredientes novos e rompe com todas as barreiras do desconforto, ou os limites socialmente – e até criativamente – aceites.

A qualidade do argumento está lá, como Perrotta – que publicou a história como livro originalmente em 2017 – nos habituou. Não é tão-somente uma série sobre uma mulher que desperta novamente para a sua sexualidade, mas cria algo mais. Entre as decisões conscientes e instintivas, Eve é desafiada a confrontar um lado da sua personalidade que estava adormecido pela responsabilidade ser mãe e de colocar Brendan sempre em primeiro. Algo que o filho talvez não valorizasse o suficiente, também porque estava muito focado em agradar ao pai, Ted (Josh Hamilton), dedicado ao filho mais novo e autista, muitas vezes em detrimento de Brendan.

«Mrs. Fletcher» vai certamente dar que falar nas próximas semanas, sobretudo ao fim de vários episódios. Provocadora, assertiva e despreocupada: a série tem os ingredientes todos para tirar o espectador da sua zona de conforto e desafiar a forma politicamente correta como se lida com ocasiões marcantes da vida adulta, como a saída de um filho de casa. Esta série marca também a última participação de Cameron Boyce, que faleceu durante as gravações/edição da trama.

Tive acesso antecipado, pela METROPOLIS, à temporada completa de «Mrs. Fletcher», que estreou na HBO Portugal na passada segunda-feira.

Sara Quelhas

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