Lovecraft Country: a metáfora de um passado racista

Tive acesso antecipado a cinco episódios de «Lovecraft Country», uma das estreias mais aguardadas no catálogo da HBO Portugal. Numa história onde o pulp horror é quem mais ordena, Misha Green, Jordan Peele e J.J. Abrams reimaginam a terrível alegoria do racismo na América. O primeiro episódio fica disponível esta segunda-feira, 17.

Quando iniciarem a viagem ao «Lovecraft Country», apertem o cinto. Esta jornada alucinante tem monstros, muito sangue, twists bem concretizados e um argumento com uma qualidade acima da média. A mais recente aposta da HBO combina alguns ingredientes que prenderam a audiência em êxitos como «Get Out» (2017), de Jordan Peele, «Stranger Things» e «Watchmen» (a série), além de uma pitada de «True Blood».

A ironia de «Lovecraft Country», inspirada pela obra que Matt Ruff publicou em 2016, começa logo no título. O escritor H. P. Lovecraft tornou-se célebre por criar um estilo muito caraterístico de terror, fantástico e cósmico, que ultrapassou, nos anos 20, os limites da imaginação. E com muitos, muitos monstros à mistura. O estilo inspirou, ao longo de 100 anos, um sem fim de autores, filmes, séries e videojogos. Mas, à luz da atualidade, torna-se indispensável falar das motivações de Lovecraft: um homem racista, xenófobo e homofóbico, cujos monstros personificavam o seu próprio preconceito.

Agora, uma história com o seu nome no título é protagonizada por afro-americanos, mulheres empoderadas e com foco em temáticas LGBT. Apesar disso, pode dizer-se que a viagem até ao país de Lovecraft [Lovecraft Country] continua a não ser agradável.

 

O racismo é um monstro — e anda à solta

Situada na América dos anos 50, racista, machista e corrupta, a série de 10 episódios relata a aventura — tornada pesadelo — de Atticus Freeman (Jonathan Majors), um ex-veterano da Guerra da Coreia, rumo ao desconhecido, à procura do pai. Montrose (Michael Kenneth Williams), com quem mantinha uma relação distante, pede-lhe ajuda e chama-o até à misteriosa localidade de Ardham [Arkham, a uma letra de distância, era o palco de muitas das narrativas de H. P. Lovecraft]. Atticus faz-se à estrada com o tio George (Courtney B. Vance), com uma carreira a ajudar afro-americanos a movimentarem-se pelos EUA, e Letitia (Jurnee Smollett).

A segregação racial assume uma presença constante e, apesar de intrínseca ao contexto da narrativa, é desconfortável para o espectador. Desde os transportes públicos aos cafés, passando pelos encontros — aparentemente banais — com as autoridades. O trio enfrenta obstáculos de forma frequente, entrando em confrontos mesmo que nada faça para provocar isso. No entanto, não é apenas com os humanos que têm de se preocupar. Há monstros à solta em «Lovecraft Country» e ninguém está a salvo: se nas histórias de vampiros se foge deles após o pôr do sol, aqui foge-se do desconhecido.

Quando, chegados a Ardham, são (demasiado) bem recebidos, sabem que algo não está bem. As vibes de «Get Out» (2017) são inevitáveis, seja no estilo ou no rumo da narrativa, e estão certas (pelo menos em parte). O racismo também ocupa aqui um lugar central da história que a criadora Misha Green — que conta com Peele e Abrams como produtores executivos — quer contar. E, ainda que tenham como base o livro de Ruff, os envolvidos não têm qualquer problema em fazer alterações para, assim, darem resposta e dimensão à storyline que se propõem a desenvolver.

 

Uma alegoria camaleónica

«Lovecraft Country» não é uma série óbvia. Os monstros são um elemento importante, mas passam para segundo plano perante a quantidade de acontecimentos que se sucedem, episódio após episódio. Embora haja uma Ordem, branca e ritualística, no epicentro da narrativa, as linhas secundárias por que seguem Atticus e companhia dão uma complexidade inesperada à história. Além disso, há um conjunto de objetos insuspeitos que contribuem para que este crescimento seja uma constante e, ao mesmo tempo, o argumento não perca o interesse.

Para a construção deste universo muito contribui a banda sonora, que vai da tensão dos momentos de terror (intenso ou não) a intros com Rihanna, monólogos poderosos de comentário social e mordaz, e músicas associadas à cultura afro-americana. Há, por exemplo, um momento simplesmente delicioso que envolve Letitia e um bastão, ou uma abertura com Christina Braithwhite (Abbey Lee) ao volante do seu carro.

Tudo em «Lovecraft Country» pode ser uma surpresa, e isso não se limita ao rumo que a trama vai seguir. Falamos de banda sonora, mas também de realização, montagem e flashes de informação, que funcionam como catalisador da ação e “rasteiras” para o espectador.

Dá vontade de devorar em maratona, mas vai ter um episódio novo lançado semanalmente à segunda-feira. «Lovecraft Country» é uma das novidades mais “quentes” deste verão, uma altura antes tradicionalmente morna por causa dos hiatus das temporadas televisivas. Vive-se uma época dourada em TV, e esta série também é sinal disso: uma aposta de pulp horror — um género popular mas nem sempre aposta generalizada —, com um bom investimento técnico, incursões ousadas (ditas “fora da caixa”) do argumento e, consequentemente, um nível alto de expetativas a corresponder.

 

A importância do timing em Lovecraft Country

timing desempenha também um certo protagonismo quando falamos de «Lovecraft Country». A série chega num contexto diferente daquele que foi pensada. Como sabemos, nos últimos meses intensificaram-se protestos pelos Estados Unidos com a campanha Black Lives Matter, que visa combater o racismo que se mantém ainda nos dias de hoje. Mais do que nunca, é pertinente debater a injustiça e preconceito social que, apesar de ser mais visível (e normal) nos anos 50, continua a estar presente, mesmo que de forma mais disfarçada.

 

Texto originalmente publicado na Metropolis

 

Sara Quelhas

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