Glória: o mundo “ouvido” a partir do Ribatejo

A primeira série portuguesa da Netflix tem estreia marcada para hoje, 5. Glória do Ribatejo é a protagonista improvável da trama, que recorda como a Guerra Fria também se jogou em Portugal.

Todos os caminhos vão dar à pacata localidade de Glória, no Ribatejo, onde os americanos tentam traçar o rumo da vitória na Guerra Fria e há personagens com sonhos tão singelos como ver o mar. É um outro Portugal, em 1968, tempo de Ditadura, PIDE e Salazar no poder. Um tempo em que se mandavam os filhos da terra para a Guerra do Ultramar, em nome do controlo das colónias, ou estes fugiam a “salto” para França para fugir à morte (quase) certa. Eis o contexto de «Glória», a primeira série portuguesa com assinatura Netflix.

Do geral para o específico: a ação principal está relacionada com a rádio RARET, onde os norte-americanos passavam propaganda ocidental para o leste mais controlado pelo comunismo. Em funcionamento durante cerca de 45 anos, este espaço envolveu centenas de portugueses, sem que muitos deles imaginassem sequer o propósito daquele local. É para lá que vai trabalhar João Vidal (Miguel Nunes), filho de uma figura emergente do regime salazarista e proveniente de uma família muito ligada à PIDE e aos interesses americanos. No entanto, contra todas as expetativas, cedo percebemos que João é um agente do KGB, colocado na RARET com o objetivo de espiar para os russos.

As séries históricas de produção nacional têm feito sucesso, e chegou a altura de testar a fórmula para uma audiência mais global. Com realização de Tiago Guedes e argumento de Pedro Lopes, «Glória» cria uma história complexa em torno da rádio em particular e dos conflitos de Portugal e Estados Unidos em geral. A visão é ampla e, além de estabelecer um drama pessoal interessante, critica também ativamente o papel dos governos na manipulação de uma população pobre, conservadora e limitada nos seus direitos, nomeadamente de expressão. Da mesma forma que Portugal se tenta manter neutro na Guerra Fria, vai tentando garantir o controlo da situação.

Além de João Vidal, no centro, «Glória» aborda os jogos de espionagem da PIDE, CIA e KGB, bem como a crueldade aplicada em prol de uma suposta normalidade ou objetivo final. O elenco conta com intérpretes de carreira sólida, como Adriano Luz, Sandra Faleiro, Albano Jerónimo, Afonso Pimentel, Ivo Canelas, Leonor Silveira ou Victoria Guerra.

Tive acesso antecipado aos primeiros quatro episódios, que ajudam a perceber de onde vem e para onde vai «Glória». Igual a si própria, a produção nacional aposta numa narrativa séria, mas que se alimenta das suas personagens para fortalecer a sua proximidade com o público, por um lado, e o lado social e humano do passado português (e não só), por outro. Resta saber é se o que funciona localmente tem potencial para agarrar outras geografias…

Esta é uma produção da SPi, do Grupo SP Televisão, e coprodução da RTP.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

 

Sara Quelhas

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