Categories: REVIEWSRTPTELEVISÃO

FELP: uma comédia costurada a absurdo e crítica social

«FELP» nasce do mesmo laboratório criativo que nos deu «Pôr do Sol» e não esconde a ambição de ser ainda mais delirante. Com estreia marcada para o horário nobre da RTP, a série, que também ficará disponível na HBO Max, promete transformar o verão televisivo português. Uma comédia irreverente onde bonecos de peluche exigem direitos básicos e acabam por parodiar, sem pudor, os vícios da sociedade.

Depois do fenómeno «Pôr do Sol», Henrique Dias, Rui Melo e Manuel Pureza voltam a unir esforços para criar uma comédia televisiva que desafia convenções. «FELP» assume-se como sucessora espiritual dessa irreverência, mas troca a telenovela parodiada pelo delírio político. A ação decorre num universo em que bonecos de peluche são cidadãos de “segunda categoria” e fundam a Frente Espetacular pela Liberdade Peluda, um movimento que luta por direitos tão básicos como representação política – ou até proteção contra raptos em massa.

O primeiro episódio mergulha de imediato neste universo paralelo, onde cafés de bairro, lavandarias e assembleias políticas são ocupados por humanos e bonecos. É nesse choque entre o quotidiano banal e a lógica absurda que «FELP» constrói o seu efeito cómico: quanto mais realista é o cenário, mais desarmante se torna a presença dos peluches. Mas a sátira não se limita à política ou ao convívio forçado: desde cedo surgem casos de raptos e tráfico de bonecos.

O contraste entre a leveza cómica e a gravidade aparente reforça a veia crítica da série, que parodia não só a burocracia e os discursos de poder, mas também a forma como banalizamos a violência quando ela não nos atinge diretamente.

Visualmente, «FELP» aposta numa estética que mistura o quotidiano reconhecível com a estranheza de bonecos a conviverem com humanos. Os cenários são intencionalmente banais, mas a presença dos peluches altera por completo a perceção, criando um efeito de deslocação constante. A realização mantém-se próxima do registo televisivo tradicional, sem truques excessivos, como forma de acentuar a naturalidade do insólito.

Narrativamente, a série organiza-se em episódios curtos, pensados para consumo diário em horário nobre, o que obriga a um equilíbrio entre gags imediatos e desenvolvimento progressivo da sátira. O humor é rápido, muitas vezes disparatado, mas nunca gratuito: cada exagero está ao serviço da caricatura social e política. A série herda de «Pôr do Sol» o gosto pela repetição de fórmulas até ao limite do absurdo, mas aqui troca o melodrama da telenovela pelo discurso político vazio, pelos clichés mediáticos e pelas conspirações improváveis.

O resultado é um ritmo ágil, que alterna entre situações de riso fácil e momentos de estranheza prolongada, criando uma cadência própria que tanto diverte como desconcerta.

Grande parte da força cómica de «FELP» nasce da forma como o elenco humano contracena com os bonecos, mantendo sempre a seriedade mesmo perante as situações mais disparatadas. Rui Melo, Anabela Moreira, Inês Aires Pereira e Inês Castel-Branco assumem papéis centrais do lado humano, explorando com rigor a ironia de tratar peluches como adversários políticos ou cúmplices de conspirações.

Já as vozes dos bonecos – como Cristóvão Campos, Gabriela Barros, Ana Cloe, Miguel Raposo – emprestam personalidade distinta a cada figura, oscilando entre a inocência ingénua e a militância aguerrida. Essa combinação entre interpretação contida dos atores de carne e osso e a expressividade vocal dos bonecos cria o choque necessário para que o absurdo funcione, reforçando a identidade própria da série.

No fundo, «FELP» é muito mais do que um desfile de disparates. Através da luta dos peluches por reconhecimento e direitos básicos, a série constrói uma alegoria sobre desigualdade, exclusão e a forma como a sociedade define quem merece ser ouvido. O absurdo serve de lente para discutir temas sérios: da burocracia que reduz indivíduos a estatísticas, à política-espetáculo que transforma tudo em encenação, passando pela violência normalizada contra quem é visto como “menos humano”. A força da série está nesse vaivém entre a gargalhada fácil e o desconforto de reconhecer, nos peluches discriminados, uma caricatura das exclusões que a sociedade insiste em normalizar.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

Sara Quelhas

Recent Posts

Especial The Morning Show

Na linha da frente da informação, «The Morning Show» expõe a luta feroz entre quem…

1 mês ago

Call My Agent Berlin: agentes no fio da navalha

Agentes em modo bombeiro: a cada cliente salvo, um novo incêndio começa. «Call My Agent…

1 mês ago

Task: quando os subúrbios viram campos de guerra

Nos subúrbios de Filadélfia, a nova série da HBO Max expõe como o crime e…

1 mês ago

Black Rabbit: o “coelho” que conduz ao abismo

Em «Black Rabbit», da Netflix, Jude Law e Jason Bateman lideram um thriller de fraternidade…

1 mês ago

Ataque ao Comboio Noturno: um thriller sobre carris

O canal TVCine Emotion estreou, no passado dia 10, «Ataque ao Comboio Noturno». A série…

1 mês ago

Porque desistimos de séries, mas ainda vemos Anatomia de Grey?

Desistir de uma série televisiva é uma decisão muito importante, ainda que muitos não o…

1 mês ago