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The Handmaid’s Tale: falar verdade a mentir

Vivemos na sociedade mais mediatizada de sempre. As ferramentas ao nosso dispor são imensas, assim como são imensos os perigos que representam. No entanto, as ameaças não começam (nem acabam) aí: por diversas vezes, o principal inimigo do ser humano é ele mesmo. É por estes motivos, entre outros, que livros como «1984» e «The Handmaid’s Tale», publicados em 1949 e 1985, respetivamente, continuam a ser urgentes e atuais.

«The Handmaid’s Tale», lançada pelo Hulu em abril, é uma distopia que, na sua mentira, nos obriga a encarar a verdade dos nossos dias. E aquela que, em 1984, a escritora Margaret Atwood espreitava em Berlim Ocidental, ainda cercada pelo Muro. Foi nesse ano que o livro The Handmaid’s Tale [publicado em Portugal com o título O Conto da Aia] começou a ganhar a sua forma final, dando corpo à narrativa com que Atwood sonhava há já alguns anos. Em parte, as linhas que ia escrevendo exorcizavam os demónios dos conflitos de que fora testemunha, e que a acompanhavam desde que nasceu, em 1939, dois meses após o início da Segunda Guerra Mundial. Mas também lembravam os resultados fantasmagóricos que a autora testemunhara em locais como a Checoslováquia ou a Alemanha de Leste, do outro lado da Cortina de Ferro.

Chegados a 2017, é incontornável que a crítica de «The Handmaid’s Tale» – ou, melhor dizendo, aquela que a série procura passar – se mantém assustadoramente atual. Terá Margaret Atwood previsto o futuro, ou foi a sociedade que não evoluiu o que devia ao longo de três décadas? Não é, ainda assim, caso único. O melhor exemplo será a obra 1984, publicada em 1949 por George Orwell, que ascendeu ao topo das vendas da Amazon em janeiro, na sequência da tomada de posse de Donald Trump e dos “factos alternativos”. Há, nas mentiras que Orwell e Atwood nos contam, pintadas de entretenimento, uma crítica feroz à realidade que os autores habitam – mas também àquelas que estão por vir, e que correm o risco de cair nos mesmos erros.

«The Handmaid’s Tale», a série, foi anunciada em abril de 2016, com Elizabeth Moss («Mad Men», «Vida Interrompida») a ser logo apresentada como a grande protagonista, a narradora ‘Offred’. O contexto frenético que se vive a nível social e político prometia o enquadramento perfeito para a recuperação da história de Atwood, mas nos meses seguintes, com a confirmação do impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Trump, esta pareceu ainda mais pertinente. Como se o hype não bastasse, o elenco é verdadeiramente de luxo, destacando-se nomes como Yvonne Strahovski («Chuck», «Dexter»), Joseph Fiennes («A Paixão de Shakespeare», «Elizabeth»), Alexis Bledel («Gilmore Girls»), Samira Wiley («Orange is the New Black») e Max Minghella («Ágora», «The Mindy Project»).

Por outro lado, numa altura em que nos preparamos para mais uma temporada repleta de protagonistas homens e brancos, a série da Hulu destaca-se pela diferença, colocando as mulheres não apenas nos principais papéis da narrativa, mas também na realização e escrita dos argumentos. Já na ficção as contas são bem diferentes, com as personagens femininas a serem colocadas num lugar bastante inferior ao dos homens, sobretudo se não pertencerem a famílias de classe alta. Nesse caso, o seu destino tem tanto de trágico como de inevitável: se forem férteis, vão trabalhar como aias para as famílias mais ricas; se não forem, vão ser colocadas em campos de concentração.

No mundo habitado por «The Handmaid’s Tale» somos colocados, tal como acontece em 1984, num país ditatorial e onde nada se sabe sobre o exterior. Fechados e controlados por um poder feito absoluto, e anónimo, os cidadãos vivem hierarquizados e compartimentalizados, demasiados presos nas suas rotinas e afastados do passado – recente, mas que parece pertencer a uma outra vida. No caso das aias, escapam ao terror dos campos de concentração e da morte pela ‘sorte’ de serem mulheres férteis numa sociedade condenada à extinção. Com grande parte das mulheres sem capacidade de ter filhos, resta às aias cumprirem rituais de procriação, a fim de darem aos patrões o filho que tanto ambicionam e não conseguem ter. É logo aqui que encontramos um dos alicerces fundamentais de «The Handmaid’s Tale» que, qual «The Truman Show – A Vida em Directo» (1998), assume o quotidiano como uma estrutura fixa e que, tanto quanto possível, não deve sofrer alterações.

A mulher não é dona do seu corpo nem das suas memórias, negadas até à exaustão com medo das repercussões que isso pode ter. Cabe a Offred (Moss) partilhar connosco o seu testemunho: do que foi, da família que teve, e dos destroços em que se transformou. Além disso, e através do seu olhar e contacto com a realidade, conhecemos outras histórias e vamos desvendado a forma como o regime se faz valer e ganha força. Ironicamente, e a lembrar os trejeitos do discurso político e da apatia pública, tudo teve origem numa realidade aparentemente normal, onde a população ‘adormeceu’ e, com o Estado a aplicar leis invasivas com ‘vestes’ de proteção, só tentou reagir quando era tarde demais.

Para acentuar o paralelismo com o presente, e também modernizar a narrativa, referem-se as redes sociais e as ferramentas da modernidade, como o Tinder, que, na sua indestrutibilidade, de nada servem quando a ditadura se impõe. Assim, tal como no futuro imaginado por Atwood nos anos 80, reforça-se a crítica ao sermos colocados, enquanto espectadores, perante uma realidade bem próxima – e que vai desde os nossos hábitos mais comuns aos vícios que vamos ganhando, ou à liberdade que temos como certa. Mas nada é certo. Muito mudou nos últimos 30 anos, mas algumas mudanças não foram tão eficazes quanto isso: as mulheres ainda lutam pelos seus direitos, procurando igualdade, e o mundo mantém-se dividido entre guerras, ameaças e ódio. Como tal, «The Handmaid’s Tale» está bem longe de ser algo do passado, afinal podemos encontrar a distopia de Offred em várias coisas do nosso dia a dia. No entanto, será que estamos atentos?

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº51 da Metropolis, de julho de 2017.

 

Sara Quelhas

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