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The Handmaid’s Tale: o que a distopia ainda tem para nos dizer

A sexta e última temporada de «The Handmaid’s Tale», com emissão em Portugal no TVCine, marca o desfecho da longa jornada de resistência de June e companhia contra o regime da Gilead. Após anos de opressão, violência e perdas devastadoras, a protagonista chega a um ponto de rutura, impulsionada por um desejo inabalável de justiça.

Na hora da despedida, «The Handmaid’s Tale» recupera os principais temas da série à boleia de novos desenvolvimentos políticos e emocionais. June Osborne (Elisabeth Moss) assume um papel ainda mais ativo na oposição ao regime de Gilead, que revela sinais evidentes de instabilidade. Num contexto de tensão crescente entre os territórios livres e o regime opressivo, as relações entre as personagens tornam-se mais complexas e os dilemas morais ganham um peso acrescido. É uma despedida que não se faz com leveza: cada episódio ecoa a dor do passado e a incerteza do futuro, num crescendo dramático que culmina numa reflexão poderosa sobre liberdade, memória e decisões.

Ela já perdeu tudo: a filha, a casa, a paz. Mas June ainda caminha, grita e luta. «The Handmaid’s Tale» não é, tão-somente, uma história sobre esperança; é uma narrativa sobre sobrevivência crua, obstinada, entre as cinzas de uma sociedade que se recusou a mudar. June é movida não por fé, mas por uma raiva antiga, amadurecida, alimentada pela lembrança dos que ficaram para trás e pela impossibilidade de aceitar o silêncio.

O mundo à sua volta está a desmoronar, mas nem por isso se torna mais simples: Serena (Yvonne Strahovski) perde o controlo e é engolida por contradições que antes ignorava; Nick (Max Minghella) hesita entre o dever e o coração; Lawrence (Bradley Whitford) manipula, acreditando ainda ser capaz de controlar o caos. Novos e antigos rostos reaparecem, reposicionam-se, e ganham força: todos à procura de uma brecha, de redenção ou de uma nova ordem. E no centro desse furacão está June, a caminhar sobre o fogo, sem promessas de salvação, mas com a certeza de que não se renderá. Quem se vai juntar a ela?

A temporada final reforça que, em Gilead, as mulheres nunca foram apenas vítimas. Foram também sobreviventes, cúmplices e combatentes. Seja Tia Lydia (Ann Dowd), com a sua fé distorcida, ou Moira (Samira Wiley), com a sua determinação incansável, ambas exemplificam os muitos caminhos possíveis entre o medo e a coragem. A resistência assume múltiplas formas e mostra que a revolução é feita tanto de pequenos gestos como de grandes ruturas.

Ao longo dos episódios, a série alterna de forma habilidosa entre momentos de introspeção e de ação, oferecendo pausas que permitem respirar sem nunca aliviar a angústia. A estrutura narrativa favorece esse equilíbrio: cada novo capítulo aprofunda uma peça do puzzle enquanto empurra a trama para o clímax inevitável. São recusadas soluções apressadas, há acontecimentos que fecham ciclos, promessas que se desvanecem, e silêncios que dizem mais do que os discursos. O tempo é, aqui, uma arma narrativa: estendido quando é preciso sentir o peso das decisões, comprimido quando a violência se torna inadiável.

Num tempo em que a ameaça de retrocessos democráticos se torna cada vez mais palpável, em que a violência contra as mulheres é normalizada ou “invisibilizada”, e em que discursos de ódio se multiplicam com inquietante impunidade, «The Handmaid’s Tale» afirmou-se como muito mais do que uma simples série de ficção distópica. Ao longo das seis temporadas, foi um alerta persistente, um sinal vermelho a piscar no fundo da nossa consciência coletiva. Talvez a sua maior conquista tenha sido precisamente essa: transformar o entretenimento numa poderosa ferramenta de reflexão e consciencialização, sem nunca abdicar da densidade narrativa, da complexidade emocional e da excelência estética.

Com a adaptação de «The Testaments» já em desenvolvimento, abre-se um novo capítulo no universo criado por Margaret Atwood. A história avança no tempo e acompanha novas personagens, revelando as consequências de Gilead e as sementes de resistência plantadas por quem ousou desafiar o sistema.

 

Texto originalmente publicado na Metropolis

 

Sara Quelhas

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