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The Handmaid’s Tale: uma série que é mais do que TV

Um episódio de «The Handmaid’s Tale», a série da Hulu que em Portugal faz parte do catálogo do NOS Play, é dose, e resulta, pelo menos, em menos três cabelos e em quatro unhas roídas. É impossível ficar indiferente à narrativa, pelo que três episódios seguidos é um desafio hercúleo. “Talvez sejamos mais fortes do que achamos que somos”, diz June (Elisabeth Moss) a certa altura, e eu não podia concordar mais com ela. Antecipação publicada na Metropolis.

Já perdi a conta aos meus amigos que desistiram da série por ser demasiado pesada, obscura e violenta psicologicamente. Alguns ficaram logo pelo caminho, outros não aguentaram a brutalidade da segunda temporada. Os que continuam, certamente têm pesadelos na noite em que veem o episódio. E isto é sinal que Bruce Miller, assim como Margaret Atwood quando escreveu o livro, está a fazer o seu trabalho.

O lançamento conjunto do trio de episódios não é inocente. Bruce Miller e companhia não quiseram arriscar perder a audiência logo no arranque, e decidiram levar o seu tempo. Colocaram as cartas pacientemente, de forma complexa, consolidando tudo isso em três episódios disponíveis no mesmo dia. Sem pressas ou personagens apressadas, tendo tempo para reforçar figuras conhecidas, como Serena (Yvonne Strahovski) ou Emily (Alexis Bledel), ao mesmo tempo que revelam mais sobre Joseph Lawrence (Bradley Whitford) ou Beth (Kristen Gutoskie). Não quer isto dizer, todavia, que os acontecimentos se sucedem a um ritmo lento, mas antes que são explorados tanto quanto possível, de modo a preparar os espectadores para a temporada que se avizinha, com atenção a pormenores de discurso e de método.

Depois de deixar a filha com Emily, que foi ajudada a escapar para o Canadá, e voltar atrás para tentar resgatar Hannah (Jordana Blake), June mantém-se igual a si própria, mas é também algo mais. Uma personagem plural, fortalecida por encarar a luta e destruída pelo que teve de abandonar para ficar. O mesmo se pode dizer de Serena, que saiu violentada das tomadas de posição que teve, mas é hoje uma personagem mais forte e complexa do que era no início da trama. Embora o poder continue do lado masculino, a verdade é que Fred (Joseph Fiennes) e a República de Gilead estão agora mais frágeis, enquanto os revolucionários ganham força. Algo que não é admitido, claro, já que seria sinal de esperança – e nesta distopia não há espaço para ela.

Longe vai o tempo em que Bruce Miller tinha o conforto da escrita de Margaret Atwood, sendo que, desde a segunda temporada, o criador tem navegado rumo ao incerto, acrescentando novas linhas a uma história publicada originalmente em 1985 e que se julgava concluída. Os seus passos parecem atualmente mais seguros, o que acaba por transparecer na monstruosidade que é a interpretação de Elisabeth Moss. A atriz está num outro nível competitivo, bem acima de qualquer outro profissional de momento em TV. Seja em silêncio, em diálogos mais acesos ou em jogadas de xadrez com ela ou à sua volta, a complexidade de June é imaginada ao detalhe, ao mesmo tempo que o resto da série vai evoluindo.

O medo continua presente, é certo, mas há uma coragem desconhecida que vem cada vez mais à tona. E é daí que ‘bebe’ a nova temporada de «The Handmaid’s Tale», uma ficção extremada que encontra semelhanças com a realidade, numa altura em que presidentes querem levantar muros e o poder é controlado por um grupo reduzido, onde poucos definem o destino de muitos. Intocáveis. Estes ‘vilões’ têm vários rostos, da corrupção à violência contra as mulheres ou as minorias, passando pela religião como justificação para os crimes mais hediondos. Eles existem, apenas assumem outras formas. «The Handmaid’s Tale» é um destino quase pós-apocalíptico e certamente distante, mas a sua probabilidade, mesmo que ínfima, é algo que inquieta. Isto é mais do que TV, é uma aula de humanidade, consciencialização e alertas para as ameaças que vivem nas entrelinhas.

Sara Quelhas

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