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Ratched: voando sobre um ninho de “víboras”

Tive acesso antecipado à primeira temporada de «Ratched», uma prequela livre de «Voando sobre um Ninho de Cucos» (1975). Sarah Paulson recria uma jovem enfermeira Ratched, a terrível vilã que valeu o Óscar a Louise Fletcher. A primeira temporada chega amanhã, 18, à Netflix.

Mildred Ratched é uma das vilãs mais icónicas do cinema clássico. Presença assídua nas listas dos maiores vilões de sempre no grande ecrã, a personagem eternizada por Louise Fletcher não deixa ninguém indiferente em «Voando sobre um Ninho de Cucos» (1975). O filme realizado por Milos Forman, e baseado no livro de Ken Kesey — publicado em 1962 —, arrebatou cinco Óscares em 76 e ainda hoje é considerado um dos melhores da história do cinema.

«Voando sobre um Ninho de Cucos» (1975) retrata o dia a dia de um hospital psiquiátrico, onde McMurphy (Jack Nicholson) e companhia tentam sobreviver à tirania da enfermeira Ratched. Situado nos anos 50, o drama aborda as difíceis teias burocráticas e os tratamentos violentos a que os pacientes eram sujeitos, sem pingo de humanidade. No centro do conflito, emerge uma Ratched malvada e de discurso afinado, que representa o pior daquela época.

 

Ratched levada ao extremo

Em «Ratched», tudo é exagero. As roupas são extravagantes, os momentos de conflito são elevados e os acontecimentos “inesperados” sucedem-se a um ritmo frenético. A assinatura de Ryan Murphy está lá a cada curva, pelo que resta saber se esta era a ideia original de Evan Romansky ou se o super-produtor usou do seu estatuto para a moldar mais a seu gosto. No centro, Sarah Paulson tem de dividir as atenções com um Finn Wittrock ao seu melhor nível, e com Sophie Okonedo numa segunda fase.

Tudo começa com um assassinato em série, levado a cabo pelo lunático Edmund Tolleson (Finn Wittrock), que não se percebe bem de onde vem. Ratched parece intrigada com o caso, enquanto viaja até ao Lucia State Hospital para tentar assegurar um lugar como enfermeira… onde Edmund está internado.

Os trejeitos estranhos, desconfortáveis até, ecoam o semblante de Louise Fletcher há mais de 40 anos, ainda que numa versão mais light. Há um pouco de nostalgia para quem viu o filme, mas a sensação de familiaridade esgota-se rapidamente. «Ratched» não é uma série para os fãs de «Voando sobre um Ninho de Cucos» (1975), é uma série para todos.

A perturbada enfermeira, envolta em mistério, usa uma das marcas da personagem original: o discurso como arma de poder. No entanto, e como seria de esperar, a sua instrumentalização não é tão fria e violenta como na idade adulta. Há mais um efeito choque, muito visual também (com alterações abruptas de cor) e uma banda sonora desconcertante — um olhar mais moderno e sonoro do que no filme. A lembrar, lá está, outros trabalhos do cocriador Ryan Murphy.

Por sua vez, o tipo de violência praticado pela personagem de Paulson é mais abrangente que o de Louise Fletcher, mais psicológico e cerebral.

 

A história de origem

Ao invés de um confronto com os pacientes, são mais notórios os desentendimentos com a enfermeira-chefe Betsy Bucket (Judy Davis) e o médico/gestor do hospital, Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones). Algo que, a funcionar como prequela, antevê uma progressiva “apatia” e desligamento da protagonista. Embora essa vertente seja interessante, nem sempre é executada da melhor maneira, caindo para segundo plano perante a força do campo visual e do exagero das situações. Ao mesmo tempo, Edmund Tolleson vai conseguindo manter a audiência em alerta.

Apesar da sensação de exagero, perante a sucessão de azares e situações de choque, há uma subcamada que funciona como história de origem de Ratched. Tudo o que lhe vai acontecendo molda, um pouco mais, um traço da sua personalidade. E mesmo os momentos de aparente bondade não são lineares e têm sempre um “efeito secundário”.

Em segundo plano, as tentativas de cura de Dr. Hanover deixam-nos incomodados, nomeadamente no que diz respeito à lobotomia. Os tratamentos “inovadores” roçam o macabro e a tortura, um eco do passado da psiquiatria e dos hospitais mentais de outros tempos.

As dúvidas em relação à evolução dos oito episódios, que serão disponibilizados de uma só vez na Netflix amanhã, dissimpam-se parcialmente com o episódio final. O cliffhanger de transição para a segunda temporada, já confirmada, é consistente e promete revolucionar o rumo da narrativa.

Destaque para o elenco de luxo, que inclui ainda nomes como Cynthia Nixon, Sharon Stone, Corey Stoll, Vincent D’Onofrio e Daniel di Tomasso, entre muitos outros.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

 

Sara Quelhas

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