Manhãs de Setembro: o impacto da realidade

«Manhãs de Setembro», do Amazon Prime Video, é um “grito” pungente do Ipiranga pela liberdade e identidade de uma sociedade massacrada pela pobreza e pelo preconceito. Liniker, mulher trans e cantora, assume o protagonismo como Cassandra.

Vanusa, considerada uma musa gay e inspiração para a comunidade LGBTQ+, é a protagonista não visível de «Manhãs de Setembro», original do Amazon Prime Video que recebe o nome de uma das suas músicas. A cantora, que faleceu em novembro, participa na série pela voz-off de Elisa Lucinda, que funciona como uma voz introspetiva dos pensamentos de Cassandra (Liniker). Tal como a atriz que lhe dá vida, a música é uma parte fundamental da vida da protagonista; mas, para sobreviver, tem de trabalhar num serviço de entregas.

Há uma cena muito simbólica logo a abrir a série. Depois de lidar com um cliente antipático, que lhe dá uma má nota de avaliação, Cassandra destrói a pequena Branca de Neve que o homem tem no jardim. Dúvidas houvesse, e logo percebemos que este não é nenhum conto de fadas.

Cassandra demorou cerca de 30 anos a ter um lugar só seu, mas, quando o consegue, toda a sua situação parece complicar-se. A viver uma relação extraconjugal com Ivaldo (Thomas Aquino), com o sonho de ser uma voz importante da modernidade como Vanusa [para desgosto de Roberta (Clodd Dias)], conformada com a precariedade da sua condição habitacional e profissional… tem ainda de lidar com a existência de um filho que não conhecia, Gersinho (Gustavo Coelho). A criança, de 10 anos, nasceu do caso de uma noite com Leide (Karine Teles), que agora vive com o filho na rua e dorme num carro.

A reação de Cassandra é a esperada: recusa o filho e reclama, de forma severa até, a sua independência. No entanto, não é possível voltar atrás e, aos poucos, Gersinho tenta integrar a vida da pessoa a quem ainda chama “pai”. Toda a questão é muito complexa e levanta várias questões na ação e na audiência, nomeadamente a nível das responsabilidades parentais que Cassandra recusa. O efeito-choque é evidente: não é fácil testemunhar a vida na rua, e as dificuldades de ter dinheiro para comer e para viver, sem acabar atrás das grades por alguma ilegalidade.

A simplicidade dos diálogos, a par de uma realização quase familiar, retiram todas as distrações do que efetivamente acontece no pequeno ecrã. Sem grande alvoroço ou complexidade, a história de «Manhãs de Setembro» cumpre o seu papel ficcional, e extravasa os seus limites para comunicar com a realidade com que coabita.

A lente invade todas as storylines da narrativa, aproximando e afastando o espectador. Algo é muito claro: não temos heróis nem vilões, mas sim pessoas muito reais, baseadas em histórias comuns e vividas, cuja naturalidade quase confunde a ficção e a realidade do Brasil. Vivem-se tempos difíceis na sociedade e «Manhãs de Setembro» coloca o dedo em várias feridas, sem pudor, para que mais ninguém ignore a triste rotina de quem não sabe se vai conseguir, sequer, sobreviver a mais um dia.

Os cinco episódios, de duração curta, veem-se com relativa facilidade, sendo que o seu impacto será duradouro. Esta é uma criação de Josefina Trotta, com realização de Luis Pinheiro e Dainara Toffoli. O elenco inclui ainda os músicos Paulo Miklos e Linn da Quebrada, além de Gero Camilo, Isabela Ordoñez, Clebia Sousa, Chelfa Caxino, Divina Nubia e Danna Lisboa, entre outros.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

Sara Quelhas

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