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Lisey’s Story: o terror psicológico do luto

Julianne Moore e Clive Owen lideram um elenco de estrelas na adaptação de «Lisey’s Story», obra de Stephen King que também assina o argumento, no Apple TV. Os dois primeiros episódios ficam disponíveis hoje.

Stephen King, o autor mais adaptado da atualidade, tem mais uma série em destaque no streaming; e o argumento é da sua responsabilidade. Desta feita, é a vez de o Apple TV+ estrear «Lisey’s Story», realizada por Pablo Larraín e com produção de J.J. Abrams. A narrativa apresenta um elenco verdadeiramente de luxo, com Julianne Moore e Clive Owen ao leme, recriando a parceria em casal de «Children of Men» (2006), além de Joan Allen, Dane DeHaan, Jennifer Jason Leigh, Ron Cephas Jones e Sung Kang.

O impacto de «Lisey’s Story» começa logo na sua opening magistral: num jogo de marionetas, duas personagens aproximam-se e afastam-se, até à separação derradeira. Uma ilustração daquela que é a realidade de Lisey (Moore), uma viúva ainda a lidar com a morte do marido e a marca que ele deixou na sua vida e na daqueles que a rodeiam, em particular a sua irmã Amanda (Joan Allen). Mas não só. Também no dedicado grupo de académicos e fãs fiéis aos livros de Scott Landon (Clive Owen), que anseiam pela publicação dos textos que o autor deixou em casa. Dashmiel (Ron Cephas Jones) é o primeiro a tentar a sua sorte, sem que Lisey mostre qualquer interesse em fazer-lhe a vontade.

A série divide-se em duas: o presente de Lisey, e os dramas familiares em que se vê envolvida, e as memórias que vai recuperando do seu casamento com Scott. Aparentemente feliz, o casamento vai revelando um lado menos belo, e também o pior de todos vem ao de cima. Lisey é uma mulher presa à dor que sente, e que ainda não conseguiu superar; dessa forma, tem uma postura mais apática perante aquilo que efetivamente ainda acontece à sua volta, para revolta da sua irmã Darla (Jennifer Jason Leigh).

Realidade ou imaginação? Será que Lisey e Scott vivenciaram realmente um mundo paralelo ou tudo não passa de uma ilusão? É este o mote da tensão, e do terror, que vai alimentando a ação protagonizada por Moore.

O presente pacato é abalado de forma intensa por Dooley (Dane DeHaan), um fã entusiasta de Scott, que promete não olhar a meios para garantir a publicação de toda a sua obra. Claramente perturbado, Dooley estabelece uma relação doentia com Lisey, que se vê forçada a recuperar às forças policiais para assegurar, assim espera, o seu bem-estar. A dedicação a Scott é totalmente cega e ilustra, por exagero, a admiração que todos parecem ainda lhe guardar. DeHaan apresenta-se a um bom nível e forma uma dupla poderosa com Moore.

Mas se falamos em Stephen King temos de falar de terror. No caso de «Lisey’s Story» este apresenta-se como um mistério: Scott não é transparente para o espectador e, aos poucos, vamos tentando posicioná-lo no universo fantástico de King. O seu elemento é a água, que significa a purificação e a cura, pelo que se torna natural ver o escritor recorrer a esta em flashbacks. Não obstante, e embora o suspense seja uma constante, o terror acontece a um nível sobretudo psicológico e quase disfuncional.

A narrativa de «Lisey’s Story» é muito cerebral, pausada e de estilo literário, pelo que não representa, de todo, uma surpresa que o argumento seja escrito pelo próprio Stephen King. O autor vai ao detalhe da sua criação para estabelecer o universo que as suas personagens habitam, privilegiando as descrições, os pormenores dos espaços e até os silêncios. Algo que normalmente, no pequeno ecrã, se procura usar com maior moderação, em busca do equilíbrio possível. Já a fotografia é intensa, quase bipolar em determinados momentos, e colorida em acontecimentos mais subconscientes da ação.

É difícil perceber para onde Stephen King nos leva, mas a audiência vai atrás. O mistério, esse, é uma insistência desde o primeiro momento e demora a apresentar-se na sua plenitude. Percebemos, ainda assim, que se trata de uma dissertação sobre o luto e a perda irrecuperável, bem como sobre a forma como quem vive lida com isso. E como, de uma forma ou de outra, tem de a aceitar.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

 

Sara Quelhas

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