De Making a Murderer a Serial: quando o crime é um “guilty pleasure”

Quem conseguiu escapar ao boom de «Making a Murderer»?Embora não se tratem de um fenómeno propriamente recente, os documentários e podcasts sobre crimes verídicos, assentes sobretudo em condenações alegadamente injustas, atingiram recentemente um novo patamar de popularidade. Há um antes e depois do podcast Serial, de 2014, e da série «Making a Murderer», do ano seguinte, que arriscaram lançar um novo olhar sobre casos resolvidos, mas com fragilidades evidentes. Ainda assim, desengane-se quem acha que estas séries dão respostas definitivas: a maior parte das vezes, deixam ainda mais perguntas.

Dias antes da estreia, na HBO Portugal, do documentário «The Case Against Adnan Syed», o americano-paquistanês, atualmente com 38 anos, viu o seu mais recente recurso ser rejeitado pelo tribunal. A série documental é baseada no caso de Adnan Syed, detido quando tinha 18 anos, em 1999, acusado de ter assassinado a sua ex-namorada Hae Min Lee. A incoerência entre provas levou Sarah Koenig, da estação WBEZ, a investigar o crime e, especialmente, a forma como as autoridades geriram todo o processo. Falamos da primeira temporada de «Serial», mas, na verdade, poderíamos estar a descrever qualquer outra série de true crime, tal tem sido a aposta intensiva em condenações “tremidas”. Ironicamente, enquanto abriu portas a outras apostas do género, «Serial» perdeu qualidade nas temporadas que se seguiram.

Tenho o hábito de ouvir podcasts enquanto trabalho. I know, estranho. Normalmente ouço música, mas, quando estou com tarefas em que não preciso de escrever, aproveito o meu multitasking feminino para pôr em dia os podcasts que acompanho. Começou na altura de «Westworld», para ter capacidade de perceber a série (né?), e tornou-se uma relação mais séria nas últimas semanas, por culpa da Marisa. Não sei porquê nem como, mas ela começou a ouvir a primeira temporada de «Serial» e falava daquilo como se fosse uma série de TV: o plot, os envolvidos, os pormenores mal explicados e, claro, o perigo de apanhar spoilers. Não foi a primeira vez que pensei como era algo bizarra a relação do público com séries de true crime, mas foi a primeira vez que pensei a sério sobre o assunto.

Nunca tinha visto «Making a Murderer» ou outros documentários do género, por acreditar que não eram bem a my cup of coffee, mas fiquei de tal forma embrenhada na discussão – e curiosa –, que basicamente fiz maratona da primeira temporada de «Serial» em poucos dias. Entretanto, e em incrivelmente pouco tempo, vi duas temporadas do podcast «In the Dark» e três episódios de «Making a Murderer», da Netflix. Sei que ainda é cedo para reclamar o meu lugar entre os verdadeiros seguidores deste tipo de conteúdos, mas estou lá perto. Comecei por ficar pelo choque: como é que casos tão sérios podem ser tratados com tamanha leviandade? Acusar pessoas a troco de nada, e deixar outras à solta e livres para repetirem os seus crimes? Como é que, em vez de fazer sentido dos acontecimentos, estes são moldados à medida das necessidades da Acusação?

No entanto, há também um lado de seriólica a falar mais alto. O que será que vai acontecer a seguir? (Na verdade, aconteceu antes, mas não se pesquisa para evitarmos spoilers. Parece «A Guerra dos Tronos» dos pobres.) Depois, há uma frustração perante a incapacidade de perceber o desfecho, como se de uma série de ficção de tratasse. Mas é pior: é um mistério para o qual nem sempre se encontra resposta no final, e que fica aberto indeterminadamente. Ao contrário do que acontece nos filmes e nas séries, todavia, a ação continua no mundo real, atrás das grades, entre advogados e nas salas dos tribunais. Muitas vezes, as séries sobre estes casos verídicos acabam por provocar desenvolvimentos nos casos – veja-se a segunda temporada de «In the Dark», sobre Curtis Flowers, que revelou mesmo provas desconhecidas da Defesa, que a fortaleceram (aparentemente).

As séries de true crime são o meu mais recente “guilty pleasure”. Sim, bem sei que cheguei atrasada à fandom, mas mais vale tarde do que nunca, certo? Consigo perceber agora as conversas entusiasmadas entre os meus amigos sobre os casos que vão surgindo, na Internet e nos serviços de streaming, uma vez que o seu efeito acaba por ser idêntico ao de uma série de ficção. Mas ainda não entrei pelo lado moral e ético deste tipo de conteúdos: embora seja uma investigação jornalística em parte dos casos, há uma aposta maior (e perigosa) na linguagem sensacionalista e nem todas as atitudes são claras para o público e para os intervenientes, que se veem depois expostos de maneira tão mainstream.

Não estou totalmente convencida da abordagem por detrás das câmaras, nem podemos esquecer que há alguma manipulação e um certo posicionamento da audiência perante um crime real, pelo que é preciso ver para lá do ecrã da televisão ou do áudio. No entanto, acredito que a “inspeção” do comportamento da Justiça e das autoridades é um dever do jornalismo enquanto quarto poder, mostrando que aqueles que optam por caminhos ilegais não vão passar impunes. E testemunhar estes incumprimentos é algo que preocupa e nos deixa alerta, por saber que são um exemplo entre tantos, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento do documentário, construído nos moldes e com os truques da ficção, nos vicia. É uma questão complexa, vou já pensar sobre ela enquanto vejo mais um episódio!

Sara Quelhas

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