Alien: Planeta Terra – o monstro de Ridley Scott à solta

Entre a familiaridade sombria do universo Alien e a ousadia de expandir o imaginário, «Alien: Planeta Terra» chega ao Disney+ como a primeira incursão televisiva da saga. Um início que privilegia a construção de mundo e a identidade, sem deixar de semear o terror que a tornou inesquecível.

Situada no ano de 2120, dois anos antes dos acontecimentos do filme original de Ridley Scott, «Alien: Planeta Terra» abre uma nova frente narrativa no universo da saga. Sob a visão de Noah Hawley, que já nos ofereceu «Fargo», a série assume-se como prequela direta, mas sem se alongar nos enigmas metafísicos de «Prometheus» (2012) ou «Alien: Covenant» (2017). Em vez disso, concentra-se na Terra e nos seus conflitos internos, onde corporações poderosas, híbridos, ciborgues e IA se movem num tabuleiro dominado por interesses contraditórios.

O episódio de abertura apresenta-nos um futuro em que a Terra já não pertence verdadeiramente aos seus habitantes, mas às mega-corporações que controlam tudo e todos. É nesse contexto que acompanhamos o acidente da nave USCSS Maginot, propriedade da Weyland-Yutani, que colide com território da Prodigy, abrindo caminho para a chegada dos xenomorfos ao planeta. Entre as figuras que emergem deste cenário destaca-se Wendy (Sydney Chandler), uma criança cuja consciência é transplantada para um corpo sintético adulto; um “híbrido” que encarna de forma quase literal o dilema entre identidade e sobrevivência.

Ao mesmo tempo, outras personagens exploram variantes da condição humana em 2120: ciborgues que prolongam a vida através da tecnologia, sintéticos que questionam o seu lugar no mundo e humanos que se veem cada vez mais reduzidos a peças descartáveis no jogo das corporações – com especial destaque para o irmão de Wendy, Hermit (Alex Lawther).

A tensão entre a lógica fria e a responsabilidade humanista ganha vida em Kirsh (Timothy Olyphant), o synth que guia Wendy e os outros híbridos. Dame Sylvia (Essie Davis) traz humanidade à experiência, zelando pela estabilidade emocional das crianças. Já Morrow (Babou Ceesay), ciborgue fiel à Weyland-Yutani, encarna a ambiguidade moral e a tensão entre dever e conflito de consciência. Esta dimensão pessoal equilibra o peso político e económico da história, lembrando-nos que o verdadeiro terror em Alien nunca foi apenas o monstro, mas também a desumanização.

Se a narrativa estabelece as bases, é pelo som e pela estética que «Alien: Planeta Terra» nos transporta de imediato para um território familiar. Desde os silêncios tensos às notas graves que ecoam nos corredores industriais, a série recria o design sonoro que sempre foi marca da saga. Visualmente, Noah Hawley opta por um retro-futurismo sujo e funcional, próximo do Alien de 1979, onde a tecnologia parece envelhecida e o espaço urbano é opressivo, dominado por cabos, tubos e ecrãs analógicos.

Quando o terror irrompe, fá-lo de forma mais contida do que no clássico de Ridley Scott, mas não menos eficaz. «Alien: Planeta Terra» aposta mais no suspense do que no choque imediato, deixando que o som, a escuridão e a expectativa desempenhem o papel de catalisadores da tensão. A violência e a presença dos xenomorfos surgem como momentos cirúrgicos, pensados para maximizar o impacto, em vez de saturar o espectador. Esse “horror domesticado” pode parecer menos visceral do que no filme original, mas adapta-se bem ao formato televisivo, mantendo a intensidade sem perder a cadência narrativa.

Ao contrário de outras entradas da saga que privilegiaram a ação imediata, aqui o ritmo é deliberadamente paciente. Noah Hawley dedica tempo a posicionar cada peça no tabuleiro: as corporações rivais, os diferentes grupos de humanos e pós-humanos, e a própria protagonista. Este investimento inicial pode parecer arriscado para quem procura apenas o choque do horror, mas revela-se essencial para dar densidade à narrativa. Quando o terror finalmente se instala, já não acontece no vazio: atinge personagens que já nos dizem algo, além de estruturas de poder e dilemas morais que foram cuidadosamente preparados.

No centro de «Alien: Planeta Terra» está a pergunta sobre quem somos numa realidade dominada por jogos de interesses que nos ultrapassam. Wendy é o exemplo mais claro desse dilema: uma criança transformada em híbrido, forçada a existir entre duas naturezas que colidem. Mas a sua história é apenas um reflexo de um mundo onde a identidade individual é negociada ou anulada pelas corporações que controlam os corpos, a tecnologia e até a consciência. A trama utiliza esta tensão para reforçar um tema clássico da saga: o verdadeiro inimigo nunca foi apenas o alien, mas sim a forma como a humanidade abdica de si própria em nome do poder.

«Alien: Planeta Terra» revela-se, assim, uma entrada ambiciosa e surpreendentemente madura na franquia. Respeita o legado estético e atmosférico que definiu Alien, mas encontra espaço para refletir sobre identidade, tecnologia e poder sem cair em redundâncias. O ritmo paciente pode não agradar a todos, mas oferece a recompensa de um universo mais denso e de personagens que ganham corpo antes de enfrentarem o terror. É televisão que honra o cinema e, ao mesmo tempo, desafia-o – prova de que, mesmo décadas depois, o monstro de Ridley Scott continua a ser um espelho incómodo do que somos e do que podemos vir a ser.

 

Texto originalmente publicado aqui

 

Sara Quelhas

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