30 Monedas: a herança negra de Judas

Quando se dá a Álex de la Iglesia e Jorge Guerricaechevarría toda a liberdade para criar, só se pode esperar um sucesso. A HBO fez isso e eu tive teve acesso antecipado ao resultado, «30 Monedas», com estreia marcada para amanhã, 29.

Nunca pensei escrever isto numa review, mas tudo começa quando uma vaca dá à luz um bebé humano, em «30 Monedas» [internacionalmente «30 Coins»]. A pacata localidade espanhola onde isso acontece, e que conta com Paco (Miguel Ángel Silvestre, Sense8) como presidente da Câmara, fica virada do avesso. Sem serem capazes de encontrar uma lógica para o acontecimento, a população recorre ao padre Vergara (Eduard Fernández) em busca de respostas — primeiro à procura de segredos das confissões, depois de esclarecimentos divinos…

A mulher de Paco, Merche (Macarena Gómez), tinha sido clara: o cargo dele não era político, apenas interessa o poder que o mayor tem para assinar licenças. Como tal, os negócios do casal parecem ir de vento em popa… até que a destruição se começa a instalar na localidade. Ainda assim, a primeira parte da previsão revela-se certeira: a vida de Paco depressa se afasta da política e aproxima-se de contornos sobrenaturais.

Em tempo de redes sociais, em que a maior preocupação de Paco é o Twitter, não há mistério do passado que dure muito. Ou, pelo menos, parte dele. É fácil descobrir que o padre Vergara é um exorcista, boxeador e ex-presidiário, que se viu exilado pelo Vaticano na sequência de uma tragédia. Era suposto esta paróquia “no fim do mundo” contribuir para uma vida mais serena, mas Vergara não podia estar mais longe da verdade. Os problemas também vieram com ele. Junta-se ao padre e ao presidente Elena (Megan Montaner), uma veterinária deixada pelo marido por ser “louca”.

A origem está no título: as 30 moedas. Naturalmente, não são 30 moedas indiferenciadas, mas sim aquelas que Judas Iscariotes recebeu para trair Jesus, então condenado à morte na cruz. Diz a lenda, pela qual os “vilões” desta narrativa se fazem reger, que as moedas vão conferir a quem as reunir uma quantidade de energia imbatível, pois contêm a dor de Cristo.

Espanha a caminho de novo sucesso com «30 Monedas»

Depois do êxito mundial de «La Casa de Papel», para a Netflix, não será de estranhar que «30 Monedas» lhe siga as pisadas, desta vez no género de thriller/terror.

A narrativa recorre à religião para criar uma realidade repleta de violência e possessões, tudo devido à maldita moeda que Vergara trouxe de Itália. No entanto, esta conspiração mundial é maior do que alguma vez se poderia prever. E, entre mortes e desaparecimentos, a paz parece estar distante e o pesadelo de Paco e Elena parece não ter fim.

A combinação de thriller e terror, nomeadamente psicológico, é poderosa. O espectador fica num estado de constante alerta, desconfiança e, a espaços, há alguns sustos mais inesperados. Além do ambiente “convidativo”, também o argumento e a realização são de um nível elevado, algo que não surpreende, uma vez que falamos de Álex de la Iglesia (realizador e autor) e Jorge Guerricaechevarría (autor). A dupla é responsável por filmes como «O Dia da Besta» (1995), «A Comunidade» (2000), «Bruxas e Outras Loucas» (2013) ou «El Bar» (2017).

É certo que Espanha tem uma tradição bem-sucedida no que diz respeito ao terror, veja-se, por exemplo, a saga REC. Agora, chega a prova de fogo: será «30 Monedas», uma versão mais extensa e de ritmo mais progressivo, atrativa para as massas? Tudo indica que sim, pois a trama não só apresenta uma história cativante, como também sabe equilibrar a construção do clima tensão, em crescendo de episódio para episódio, com muita ação, mistério e vozes do Além.

O primeiro episódio de «30 Monedas», que fica disponível amanhã na HBO Portugal, teve estreia absoluta em setembro no Festival de Veneza. Os episódios são lançados semanalmente, com o terceiro a ser um dos mais bem conseguidos

 

Texto originalmente publicado aqui

 

Sara Quelhas

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